Biombo Escuro

24º FESTIVAL DO RIO

Walk Up

por Tiago Ribeiro

14/10/2022; Foto: Divulgação/Festival do Rio

Vamos todos para a Ilha Jeju

O diretor sul-coreno Hong Sang-soo vem imprimindo ao longo dos últimos anos um ritmo de trabalho incessante, que proporciona para os amantes do seu cinema uma espécie de ritual anual; o de ver os seus múltiplos filmes lançados. A frequência e tamanho das produções trabalha em favor do estilo do diretor, que nunca sai de forma com seus filmes curtos e espontâneos. Como se surgissem de devaneios, ou vagamente inspirados em memórias autobiográficas, os filmes de Sang-soo constantemente evocam uma atmosfera aconchegante e propositalmente lenta, como se incorporassem um modo de enxergar em sua estrutura formal. A manipulação da temporalidade e das dimensões da ficção são sempre trabalhadas pelo diretor, alternando o modo narrativo de modo quase que imperceptível, mas facilmente palpável por entre as conversas. Sua diegese é perfeitamente fluida, mesmo que composta de elementos essencialmente naturalistas. Sang-soo se utiliza disso para manipular a temporalidade de seus filmes, nunca deixando de mão elementos de linguagem essencialmente sóbrios, mesmo que suas instâncias de narratividade estejam ébrias, em constante embaralhamento. Não à toa, coloca seus personagens em situações nas quais se embriagam, nas quais deixam de lado as amarras e se separações e tornam-se tudo que são ao mesmo tempo.

Em Walk Up(2022), seu segundo filme no ano após o excepcional The Novelist's Film(2022), o diretor trabalha mais uma vez em relevo conhecido. Mais uma vez trazendo o notório personagem do diretor de cinema, encarnado pelo rosto conhecido de Kwon Hae-hyo, que se encontra com a velha conhecida Ms. Kim, interpretada por Lee Hye-young, que o mostra os andares do prédio em que se passa o filme inteiro. Subimos junto com a inquilina, ouvimos histórias passadas do lugar e como foram feitas reformas e a decoração, ligadas intimamente a sensibilidade artística de Ms. Kim, que é designer de interiores. Demonstrando esse constante fascínio por reencontros, no qual os personagens conversam de modo a colocar as coisas em dia, a narratividade rapidamente nos leva a outros momentos, da forma imperceptível pela qual Sang-soo costuma orquestrar suas cenas.

O tempo passa, as linhas se borram enquanto completam os círculos desenhados por suas histórias. O hermetismo permite que toda uma miríade de eventos habite este mundo circundado pelas instâncias narrativas de Sang-soo. Pouco importa a impressão de realidade, o diretor joga em favor das fronteiras difusas de ficcionalidade, alternando as dimensões de modo a torná-las indiscerníveis. No curto tempo de um corte nos encontramos já em outro capítulo deste mundo, não sabendo se estamos lidando com o passado, o futuro, uma alternativa do presente. A impossibilidade de separar fato de ficção é o que faz o cinema de Sang-soo tão intrigante, exemplificado em Walk Up pela forte cena na qual o personagem de Byung-soo encontra-se deitado na cama, frustrado pela ausência da mulher com a qual se relaciona. Vindo de fora da tela e propositalmente ruidosa, ouvimos uma conversa entre os dois, que pode ser tanto imaginada por Byung-soo, como uma prévia da conversa que irá transcorrer.

Como é a vida doméstica e como ela reflete nossos estados de espírito. Como é viver vidas separadas dessa. Como é ver pessoas partirem e chegarem. Como é continuar eternamente subindo e descendo escadas, preso em um eterno paradoxo sísifico. A casa obedece às ordens daqueles que a habitam, e adoecem juntas, tornam-se tristes e se renovam de acordo com as temporadas. Se a personagem de Ms. Kim é uma designer de interiores, ela é responsável por enxergar os mundos internos dos outros, bisbilhotar dentro de seus interiores de modo a tornar suas externalizações precisas, verossímeis. Nada mais natural que com a aparente progressão temporal que se dá entre as passagens de Walk Up, o prédio no qual se passe o filme vá começando a ter problemas estruturais, como as doenças trazidas pelo envelhecimento dos humanos.

Desse contexto, praticamente todos os personagens do filme estão vivendo ou eventualmente irão viver profundas crises, que os põe em estado de fuga. Parece uma piada recorrente de Walk Up o fato de diversos personagens quererem se mudar para a Ilha Jeju, uma ilha de formação vulcânica notoriamente turística da Coreia do Sul, conhecida pelas praias e pelas plantações de girassóis. O mundo está ruindo, junto das casas, dos corpos e do fazer artístico não comercial, e tudo que resta é a fuga para um paraíso distante.

O modo industrial de fazer cinema deglute o modo artesanal, torna-o seu próprio bicho de estimação e o domestica. O protagonista doente e sem investidores para seus filmes encarnado por Byung-soo age quixotescamente diante da apropriação feita pela arte da indústria cultural, e não obstante falha, vendo seus horizontes gradualmente se fecharem. Desse modo, Walk Up é auto consciente na forma em que reconhece que produções como a do próprio filme, despretensiosas e com o intuito de fazer cinema como arte, estão morrendo, que não tem mais lugar para chamar de seu. Esse tema também é discutido em The Novelist's Film, sendo um conflito identificável com praticamente todos que dedicam sua vida a fazer arte. A mão cobiçosa da indústria cultural, resumida talvez em Walk Up pela imagem da miniatura de um carro dentro do próprio carro, está sempre à espreita para tentar transformar arte em produto. Resta o escapismo da Ilha Jeju, em mais um excepcional filme do diretor que melhor consegue falar através de seu cinema, tratando de grandes temas com o coração mais leve possível.

Tiago ribeiro

Editor, Redator e Repórter

Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.