Biombo Escuro

26ª Mostra de Tiradentes

A Vida são Dois dias

por Tiago Ribeiro

02/02/2023; Foto: Aline Belfort

Dançando na sintaxe absurdista

Notório por uma vasta experiência com curta metragens em seu currículo, o cineasta cearense Leonardo Mouramateus traz muitos traços próprios de suas vivências em seus filmes. Elas surgem como reminiscências de experiências, resquícios de impressões, que tornam seus filmes extremamente pessoais. A expressão da palavra falada toma proporções poéticas que apenas a oralidade pode expressar. Contar histórias sobre pessoas contando histórias pode até ser uma aventura interessante, principalmente quando se descarta uma bússola e compromete-se com a quebra de convenções narrativas.

"A Vida são Dois Dias", esforço mais recente de Leonardo Mouramateus, é calcado na maleabilidade das performances, que buscam, utilizando-me das próprias palavras do diretor, chegar a uma "espessura da ficção". E Mouramateus faz isso jogando com o alcance das atuações e dos papéis que elas assumem dentro do filme, assumindo um total descompromisso com qualquer gramática fílmica preestabelecida.  

Confunde-se a estética do duplo com a com a piada jocosa dos filmes de gêmeos. No centro estão Orlando e Rómulo, ambos interpretados por Mauro Soares, dois gêmeos com personalidades distintas, mas que se complementam. Um manuscrito, intitulado "Alegria repetida", é enviado para Orlando por Rómulo, estranhamente derivado do jogo que seu colega de quarto está desenvolvendo, que é derivado de algo que ambos ouviram numa aula. Misturando-se a essa multitude de origens está a atriz Mariah Teixeira, sempre retornando à tela vestindo uma pele diferente. Cria-se a sensação de que todos os personagens estão tentando enganar um ao outro, guardando algum segredo, enquanto o próprio filme tem pouco interesse em qualquer verdade maior sobre si mesmo.

Os esqueletos se confundem, em meio a danças malucas e situações absurdistas. A não linearidade serve mais como modo de operação mais do que de desconstrução da sequência narrativa, que se conecta com a forma que "A Vida São Dois Dias" entende a natureza da ficção. Completamente aberta, um emaranhado de histórias dentro de histórias, fazendo uma cama de gato, pronta para ser esticada e refeita inúmeras vezes. 

O lastro de uma relação colonialista habita "A Vida são Dois Dias", que alterna entre seus núcleos em Portugal e no Brasil. Os dilemas e diferenças, desde as dissonâncias fonéticas entre os portugueses falados, e até nossos embates históricos, se tornam símbolos que alimentam o devir eloquente das palavras que não param de ser faladas, de uma história que não consegue se conter. O diálogo é intenso também entre o cinema de ambos os países. Rita Azevedo Gomes, consagrada diretora portuguesa, faz uma ponta no filme, e se faz presente para além de sua materialidade, provando-se uma grande influência. Diferentemente da inversão como caminho para a ficção que Miguel Gomes faz em "Diários de Otsoga", Mouramateus está mais interessado em uma implosão de qualquer estrutura, como a que a moto de Rómulo sofre quando é atropelada pela direção incauta de uma das personagens de Mariah Teixeira. 

Há uma extrema velocidade verborrágica, lampejos de escrita e complôs dentro de complôs que fazem que "A Vida são Dois Dias" soe como uma canção cujos versos são escritos conforme a melodia é encontrada. Um improviso conduzido pelo desejo de ficção. Como criar imagens provenientes de palavras, explorar o mundo que as habita. E as imagens que surgem da música, as danças que elas inspiram. Brincar com convenções de gênero cinematográficos, entrando em histórias dentro de histórias. É tudo motivo para risada e desconstrução.

Tiago ribeiro

Editor, Redator e Repórter

Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.