Biombo Escuro

24º FESTIVAL DO RIO

Decisão de Partir

por Alberto A. Mauad

12/10/2022; Fotos: Divulgação/ Festival do Rio

A História sempre se repete?

Notas sobre Decisão de Partir

“Eu caminho sozinho

Nesta rua de neblina

A um tempo atrás, você era tão doce

E a sua sombra também

Não adianta pensar nisso

Na memória do passado

Mesmo assim estou ansiosa

Desejando você no meu coração”

The Mist, Jung Hoon Hee

  1. O trabalho de um tradutor é interpretar e transcrever um certo tipo de código para uma outra linguagem. Evidentemente, quanto mais se estuda, mais fácil é o processo de reprodução. Algumas coisas são intraduzíveis. Certos dialetos possuem maior assimilação entre si, devido suas origens, como por exemplo, as línguas latinas (português, francês, espanhol, italiano etc). Apesar de muito divergentes, o coreano e o chinês funcionam a partir de ideogramas, o que representa uma cultura intrinsicamente imagética desde a origem de seus signos gráficos. O detetive também necessita decifrar um evento que já foi arquitetado no passado. À vista de seu conhecimento empírico e teórico prévio, mais os elementos aparentemente revelados à sua disposição, cabe ao policial traduzir o fenômeno e revelar o autor dessa expressão. Por fim, o espectador de cinema pós-moderno, automaticamente, já possui referências e influências preliminares à especular sobre sua obra suspeita. É uma questão de tentativa e erro acerca da linguística cinematográfica, não há uma exatidão em relação a arte.

  2. A paixão e a violência são sentimentos que costumeiramente abordam o cinema, são os mais puros extremos desejos do universo palpável, há toda uma linha tênue entre um e outro, são ininteligíveis, se confundem constantemente - da simples imprecisão da tradução de “cabeça” para “coração”, como ancorado em determinada cena de Decisão de Partir (2022). Seus atos supremos (amor/sexo e morte/assassinato) são as ações mais delicadas e festichisadas, para André Bazin, tais fenômenos físicos são quase impossíveis de serem realizados com seus devidos cuidados. Na sua compreensão, alguns cineastas observaram que o tesão e o ódio têm matrizes embrionárias iguais, é o caso de Brian de Palma, Paul Verhoeeven, Dario Argento, que para a ausência de uma resposta concreta, distorcem toda a sua métrica.

  3. Na pós-modernidade o espaço-tempo se fragmenta, perde seu valor. A história de amanhã não existe mais. O ontem é o futuro do hoje. O tudo é o nada ao mesmo tempo. Assim, andar para frente, inocente da reprodução do passado, é inviável. Na contemporaneidade, cinema é tanto espetáculo, quanto fascinação (Michel Mourlet), identificação (Béla Balázs) e desejo e mito (Edgar Morin), quanto abertura (Serge Daney). Pode ser tanto exibicionista quanto não-exibicionista (Christian Metz). É o processo do futuro que é incapaz de seguir sem o ontem. É a passividade e a atividade na mesma perspectiva, tal qual o caminho do protagonista – voyeur -, que sai de um primeiro caso como agente passivo, para um desejo primitivo em relação à suspeita, realçando um segundo crime como cumplice parcial. Seria essa ambivalência uma nova pureza?

  4. . Por falar em ambiguidade, é essa dualidade que move tudo que o cinema tem a oferecer desde a cinematografia moderna, principalmente o pós-Vertigo (Alfred Hitchcock, 1958), ainda que demasiados diretores não tenham entendido isso ainda. Quem busca por originalidade é por absoluta ignorância, certamente. Quem vive em metrópoles é soterrado pelo fluxo interrupto de signos culturais e publicitários. O dever do autor é seguir sempre os passos do passado para uma reinterpretação próxima, como demonstra Hae-joon no filme, eternamente capturando e caminhando pelos exatos mesmos passos calculados e acontecimentos primitivos em busca de uma resposta enigmática, assim como a reimaginação, o “estar” diante e dentro do ato, mesmo que a presença do espectador não exista dentro do espetáculo propriamente.

  5. . Park Chan-wook compreendeu tudo isso. Sim, Decisão de Partir é De Palma, Hitchcock, melodrama clássico, barroco mais uma infinidade de gêneros e influências do armazenamento popular, assim como todas as outras obras contemporâneas existentes. Mas, de novo, como a maiorias dos outros artistas, Park Chan-wook continua não sabendo lidar com o seu mote, com a sua própria história, é algo eternamente pseudo volúvel. Está toda a exploração imagética ali, ainda que presa à normas linguísticas que o sul coreano não percebeu cabalmente.

  6. Seo-rae, no derradeiro final do longa-metragem, morre, pois, na contemporaneidade, a ideia referencial principal, acaba se perdendo, soterrado em meio a tanto caos (in)significante, resta a busca incessante do flaneur para tentar alcançá-la, mesmo que pouco visível, sabe-se apenas que sua névoa sugestiva reside ali, abaixo de toda a libertinagem do mar. Porque, afinal, o cinema de hoje está fadada a ser a cópia barata da duplicata, simultaneamente, é um progresso paulatino sem rumo diante de uma história que pode (ou não) ter cessado.

Alberto A. Mauad

Redator

Estudante de cinema na PUC-Rio, redator do Biombo Escuro e cineasta. Tem interesse pelas áreas de linguagem, história e autorismo cinematográfico.