Biombo Escuro

24º Festival do Rio

O Contador de Cartas

por Tiago Ribeiro

08/10/2022; Foto: Festival do Rio/Divulgação

Entre O Contador de Cartas e O Batedor de Carteiras

Há algo de bastante distante e perturbador no filme mais recente do diretor e notório roteirista Paul Schrader, The Card Counter(2021). Seu mais recente longa é um ato psicológico sobre o método, seja o da aposta, seja o da tortura. O filme articula sobre o modus operandi dessas formas de relação com o mundo assumindo as lentes de seu protagonista, William Tell(Oscar Issac), um ex-militar assombrado por crimes de guerra cometidos em seu passado. Esse passado que contamina cada ação do protagonista é um que passa pela história recente da política externa estadunidense, a "Guerra ao Terror" empregada pela administração Bush seguindo os eventos do 11 de setembro. A partir dessa perspectiva, o filme ficcionaliza em cima de eventos reais e reflete sobre a própria condição estadunidense do século XXI, oferecendo vislumbres através dos diários de Tell das consequências de atos indizíveis sobre o psicológico de seus perpetuadores. Atos esses de violação dos Direitos Humanos praticados em nome de "defender vidas estadunidenses", como bem diz o personagem do Major John Gordo(Willem Dafoe).

O filme já começa com a narração desapegada e fria de Tell, que através de relatos de um diário parece encontrar alento na vida cíclica e repetitiva que vive encarcerado em uma prisão militar. A prisão é banhada por um cinza industrial que pausteriza toda a imagem, e esse o tom do resto da fotografia de Alexander Dynan. Após essa sequência em que percebe-se a natureza do personagem, o narrador protagonista começa a discorrer sobre o método de contar cartas, mais um ciclo lógico no qual ele consegue prosperar. Schrader filma as ações de Tell com a meticulosidade em que Robert Bresson filma as mãos leves dos assaltos de O Batedor de Carteiras(1959), uma espécie de filme irmão para The Card Counter.

Na verdade, muitos dos motifs da filmografia de Schrader vão de encontro ao filme de Bresson, como seu gosto por uma linguagem pouco intrusiva na mise-en-scene e por protagonistas que vivem em um limbo solitário de desespero silencioso enquanto tentam se conectar com o mundo. Esses tiques do diretor estadunidense estão presentes desde as bravatas e insanidades de Travis Bickle, o herói disruptivo de Taxi Driver(1976), longa roteirizado por Schrader.

Mas retornando a The Card Counter, temos um longa que descolore completamente todos os neons e luzes brilhantes dos cassinos pelos quais William Tell viaja, movendo-se de cidade em cidade e de motel e motel, fugindo dos demônios que o perseguem. O filme utiliza dessa abordagem anti-climática justamente para emular a psique de seu personagem, fazendo oposição a filmes que estilizam a adrenalina de apostar, como Joias Brutas(2019), filme dos irmãos Safdie. Assim como em Batedor de Carteiras, no qual o ato de roubar é apresentado apenas como método, com os roubos se dando como engrenagens que fazem uma máquina girar, Schrader não se importa em recortar ou filmar partidas de pôquer com qualquer emoção. Em cada mão jogada o que testemunhamos é o olhar frio de Tell, que fita a alma dos outros jogadores e daquele que assiste o longa.

No entanto, toda a discrição do protagonista começa a cair por água quando ele encontra dois outros personagens centrais. La Linda(Tiffany Haddish) surge como uma amiga que o compreende e com a qual ele consegue se conectar emocionalmente, e Tell vê refletidos seus demônios em Cirk(Tye Sheridan), um jovem que sofreu as consequências dos crimes de guerra cometidos pelo pai, os mesmos do próprio Tell. E na relação que se estabelece entre esses dois que surge uma conexão que esclarece o passado nebuloso de William, e também uma possibilidade de redenção. Através de sequências absurdamente distorcidas que adquirem um tom aterrorizador, vemos de relance as práticas de tortura cometidas por soldados estadunidenses em Abu Ghraib, no Iraque. Nessas sequências conhecemos a verdadeira face de um dos perpetuadores desses crimes, aquele que na mesma veia obsessiva de William criou um método de interrogação e tortura empregado pelos soldados no Iraque. Esse antagonista é o Major John Gordo, com uma presença de tela sinistra, méritos do incrível trabalho de Dafoe. Esses trechos calçam o filme na realidade e tornam sua história de forte conteúdo simbólico em relação ao seu país de origem.

E desse modo, entre a tortura e a aposta vislumbramos através dos relatos de Tell a história de um homem que cumpriu sua pena, mas que ainda não perdoou a si mesmo. Uma história que vislumbra a redenção e uma possibilidade de recomeço, apenas para destroça-la logo em seguida. Ação essa completamente oposta a de outro grande filme de 2021 com algo similar a The Card Counter, Zeros e Uns(2021) do diretor Abel Ferrara, que vislumbra um novo amanhecer após a hora mais escura. No longa de Schrader não há perdão nem recomeço, apenas vingança vazia e sem propósito, como a vida de seus personagens, perdidos em suas próprias obsessões.



Tiago ribeiro

Editor, Redator e Repórter

Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.