Biombo Escuro

24º FESTIVAL DO RIO

EO

por Alberto A. Mauad

09/10/2022; Foto: Divulgação/Festival do Rio

O Autêntico Anarquista

Em EO (2022), a peregrinação maquinal do protagonista denota a confidência de uma obra adepta a um panteísmo muito peculiar, assim como Jerzy Skowlimowski aplicou também em Matança Necessária (2010). Aqui, contanto, ele se instaura de modo profundamente assertivo, pois toda evidência centrifugada de sentimentalismo gira em torno da causalidade dos eventos no cosmo. A verdadeira prova de seu encanto está no modo como o animal protagonista se encontra agregado e inseparável do mundo materialista, à vista disso, quando está sozinho, a subjetividade desse encontro inerente é sempre revelada em uma explosão e sobreposição da imagem cinematográfica em uma visão experimentalizada potencializada, de maneira a notabilizar a incapacidade dos corpos humanos em compreender a fascinação da natureza de todas as perspectivas coletivas e individuais.

Não seria mais justo, portanto, o cineasta polonês estar sempre perpassando o burro em ambientes demasiadamente inéditos, onde cada língua falada é eternamente diferente, mas que expõe uma identificação cabal com dialetos e sotaques primários da Europa. Assim, seu discurso carrega um vigor transcendental no continente que tenta se espelhar como o auge do êxito da civilização contemporânea e que, todavia, carrega apenas os abismos do eurocentrismo e da moralidade. Logo, as pequenas confusões individuais que se pode averiguar ao redor da vida do protagonista são todas ocas, indiferentes e autocentradas, ao passo que se justapõe essa aproximação clichê do burro humanizado, que aqui ganha um certo frescor formal inovador.

Percebe-se muito uma tentativa de comparação entre EO e Au Hasard Balthazar (Robert Bresson, 1966), devido absolutamente à suas premissas similares. Porém, como sucesso de Jerzy Skowlimowski, nota-se, pelo menos, dois vícios Bressonianos: a construção de um universo essencialmente individualista, ainda que isso seja mais resultado de uma intervenção sempre humana do que do mundo natural em si; e uma noção de comportamento extremamente mórbido e essencialista de EO, o que está bem evidente na obra, tudo ao seu redor têm muita energia, movimentação, até mesmo nos outros seres naturais, menos o burro principal, que se revela constantemente estático e apático, ganhando força justamente pelas breves ações fundamentais que exerce de maneira melancólica.

Em determinado momento do longa-metragem, dessarte, avista-se uma curta cena de um robô que se assemelha a um bicho de quatro patas de pequeno porte. Este que está caminhando sem rumo por um lugar desconhecido, saindo da região asfaltada em direção à grama. Assim como a máquina, o burro tem a mesma condição primordial, que é estar impossibilitado do controle de sua vida, onde seus passos estão premeditados por autoridades exteriores, da mesma forma que o seu modo de agir é atipicamente travado. Dessa maneira, o filme transmuta esse ser fora da sua zona natural, em um possível John Wayne injustiçado, onde pode-se fazer tal comparação logo após a cena de “resgaste” no início da obra, em que todas as pessoas entram para comemorar o desenlace do evento, restando apenas EO do lado de fora, sendo enquadrado pela lente tal qual John Ford aplica o último plano de Rastros de Ódio (1956) sobre o personagem de Ethan Edwards fora de sua casa.

E viva o Burro! Este que é primordialmente o verdadeiro anarquista desse universo panteísta.

Alberto A. Mauad

Redator

Estudante de cinema na PUC-Rio, redator do Biombo Escuro e cineasta. Tem interesse pelas áreas de linguagem, história e autorismo cinematográfico.