Biombo Escuro

47ª Mostra de São Paulo

Ervas Secas

por Tiago Ribeiro

07/11/2023; Imagem: Divulgação

O que vem depois do inverno

O inverno tende a ser uma das estações que mais exige adaptabilidade dos seres vivos em prol de sua sobrevivência. Os ursos hibernam para se poupar devido a ausência de alimento, e pássaros migram em busca de temperaturas mais favoráveis. Os seres humanos se abrigar em ambientes bem aquecidos, estocar alimentos e montar lareiras. 

Na Turquia, na região abastada da Anatólia, o inverno é particularmente cruel, com intensas nevascas que tornam o lugar desolador, sinistramente vazio, cruzado apenas por cidadãos turcos, ávidos por um chá de hibisco que possa esquentar um pouco suas almas sob este fundo desolador e solitário que se desenrola Ervas Secas, novo filme de Nuri Bilge Ceylan. O longa é composto predominantemente de longas conversas, preenchendo seus 197 minutos com longas trocas existenciais, em um estilo que traz a memória os grandes romances de Fiódor Dostoiévski. 

Nesses idos da Anatólia, o professor de artes Samet leciona em uma escola infantil, mais por obrigação do que por paixão ao ofício. Ele já não desenha faz tempo, tendo encontrado uma nova predileção pela fotografia. Sua profunda impaciência com a barulhenta turma destoa do tratamento que dá a Sevim, uma das alunas que dá preferência a ouvir, e com quem troca presentes - logo nas primeiras cenas Samet presenteia Sevim com um espelho de mão, logo antes de entrarem em sala, num corredor obscurecido em que apenas vemos os desenhos de suas silhuetas, dando uma característica pictórica forte a essa troca que tanto vai se desdobrar ao longo de Ervas Secas

Nessa escola, inspetores têm a liberdade de interromper as aulas para vasculhar os pertences dos alunos, em busca de objetos desviantes de comportamento. Em uma dessas inspeções de rotina, uma carta de amor escrita por Sevim é encontrada, gerando falatório entre os professores sobre a relação de Samet e Sevim. Em paralelo, Samet e Kenan, outro professor da escola com quem ele divide residência, conhecem e firmam uma amizade com Nuray, uma mulher que os desloca dos desertos nevados onde vivem. 

Após o episódio da carta, Samet é acusado de ter uma conduta inapropriada com alunas, iniciando um embate que envolve vingança e violências veladas. A Ceylan pouco importa fazer uma investigação minuciosa dos fatos, poupando a audiência do trabalho de detetive, buscando o enfoque na construção das longas passagens em acompanhas trocas existenciais entre os personagens. 

Ceylan utiliza-se em algumas passagens de retratos de trabalhadores turcos, de suas expressões, povoando esse mundo com uma intervenção documental que estabelece o peso que todo esse ambiente carrega. Seus planos longos, que alternam entre as paisagens das nevascas e as internas constritas e escuras, caracterizam muito bem o lugar como um personagem que materializa as questões internas das figuras que o habitam. 

Em certo momento, Nuray confronta Samet acerca do que fazer diante de uma injustiça, como se portar e responder de modo a provocar uma mudança. A frustração de Nuray é resultado do que ela percebe como uma imensa estaticidade, uma ausência de reação generalizada. Ela ataca principalmente as reclamações de Samet, que pouco se traduzem em ação. Em Ervas Secas, todos estão esperando que o mundo mude, enquanto as mesmas engrenagens de sempre continuam girando. É necessário muito esforço para se vencer o inverno.