Biombo Escuro

Estreias da Semana

Virar Mar

por Tiago Ribeiro

28/07/2022; Foto: Sinny Assessoria

Transformando água em filme

Tratando-se do mundo do cinema, as parcerias na direção renderam muitos corpos de obra singulares e visões artísticas simbióticas, provenientes do diálogo artístico entre dois ou mais indivíduos. A parceria entre os irmãos Dardenne, Coen, Safdie foram frutíferas e nos ofereceram grandes obras como Gosto de Sangue(1984), Rosetta(1999) e Jóias Brutas(2019). Nestes exemplos, no entanto, se estabeleceu uma unidade fílmica, trabalhada em prol de uma visão solidificada. O que os cineastas Philipp Hartmann e Danilo Carvalho tentam fazer em Virar Mar(2020) é o contrário, realizar a fusão dessa ideia única de direção, tornando-a líquida e viscosa, conforme contam as histórias que passam pelas águas que enchem, ou que faltam, nas regiões em que vivem. Os dois diretores mostram seus respectivos filmes, e dialogam entre si através da montagem, que traça paralelos entre a abundância das enchentes da região de Dithmarschen, localizada no norte da Alemanha, e as secas do Sertão Nordestino, capturadas pelo cineasta brasileiro.

Partindo dessa premissa, é possível afirmar que diversos filmes habitam Virar Mar(incluindo um filme que é realizado dentro da própria diegese brasileira do longa), que não se contenta em impor uma ideia única, mas em desdobrar e jogar com as ideias com as quais trabalha, sempre impondo novos elementos de linguagem e de significação. Documentário, ficção, videoarte ou pura abstração e piada, todos esses modos de operação estão contidos na colagem que é o novo longa de Philipp Hartmann e Danilo Carvalho.

Entretanto, um dos maiores interesses das formulações de Virar Mar é a exploração sensorial da água, em todo seu esplendor ressonante. Por vezes vemos a própria equipe técnica do filme, com seus microfones, fascinada com rajadas d'água em um barco, enquanto a camada sonora é preenchida pela força implacável da natureza. Em outra, vemos microfones sendo submersos em rios, e somos convidados a esquecer a camada visual, que torna-se fundamentalmente instrumental, para ouvir o mundo submerso que flui por debaixo. Esse experimentalismo evoca Leviathan(2012), de Lucien Castaing-Taylor e Veréna Paravel, produção feita junto ao Laboratório de Etnografia Sensorial de Harvard, que similarmente explora as possibilidades sensitivas e líquidas do mundo.

Similarmente à Em Busca da Vida(2006), do cineasta chinês Jia Zhangke, perpassa por Virar Mar um senso de que o mar vem à espreita, implacável, retornando para tomar o que o seu. No filme chinês, a história se passa na iminência da inundação da cidade de Fengjie pela colossal barragem das Três Gargantas, a maior do mundo. Seus personagens buscam se reconectar com seus passados, mas todos parecem já habitar uma dimensão submersa. A visão que Zhangke tem da modernização da sociedade, que toma formas alienígenas, coincide muito com as tentativas de ficcionalização de Hartmann e Carvalho em Virar Mar, que encontram os mais inusitados equivalentes para os extremos processos climáticos vividos em suas respectivas regiões.

Uma sequência na qual um drone se afasta, mostrando a infinitude de uma região de brejos no nordeste, nos remete aos sensos extremos do filme. A ideia de que o mundo caminha na direção quase irreversível de eventos climáticos catastróficos é latente. As aventuras que vividas em Virar Mar pelas comunidades nordestinas ecoa o método do cineasta Emmett Brennan em Reflection: A Walk With Water(2021), no qual ele embarca em uma peregrinação a pé ao longo do aqueduto de Los Angeles, conversando com diversos ambientalistas sobre alternativas de vida à lógica capitalista que tanto destrata da água. É fruto da conversa com pessoas corajosas que desafiam o modo de vida predominante e ditam suas próprias regras, mesmo que seja pela necessidade, como é o caso dos moradores do Sertão.

Nesse sentido, nada mais natural que "O sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão", citação de Euclides da Cunha, costurada junto ao tecido do puro mito cinematográfico por Glauber Rocha, integre-se ao título de Virar Mar. Título assonante e que traz à tona um processo que se desenrola, no filme e na realidade, e que traduz perfeitamente o senso que passa pelo longa, de que o mundo está sendo tomado pela água.

    Tiago ribeiro

    Editor, Redator e Repórter

    Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.