Existe uma profunda ligação entre Medusa
(2021), novo filme de Anita Rocha da Silveira, e Divino Amor (2019),
último filme do diretor Gabriel Mascaro. Ambos compartilham uma visão de mundo,
ou uma visão de Brasil. Suas leituras estéticas da moralidade neopentecostal
chegam a pontos similares. E ambos vislumbram uma realidade na qual essa
tendência moderna torna-se predominante, a ponto de dominar todas as esferas da
vida em sociedade.
Mas não é apenas com o filme do Gabriel Mascaro que
Medusa compartilha essa visão de mundo. No próprio longa-metragem de estreia de
Anita, Mate-me Por Favor (2015), já havia a pulsão latente da
radicalização neopentecostal na qual vive o Brasil. E a fabulação criada pela
diretora em cima dessa realidade trágica é uma difícil de se olhar, uma de
terrores urbanos apenas visíveis pelas lentes de binóculos - mais aterrorizante
nos momentos em que apenas contemplamos a sátira macabra concebida por
Anita.
Em Medusa, os corpos em cena obedecem a uma
certa rigidez universal dos bons costumes. Isto é, até que ocorre a
transgressão dos mesmos, momento em que enfim se vislumbra a liberdade, o
imperfeito. O longa constrói-se a partir dessa tensão, focando principalmente
no efeito disso sobre o universo feminino. A subserviência a uma sociedade e a
existência fora dessa autoridade, na escuridão depravada. É uma distopia com a
máscara de uma utopia, e a loucura está à espreita. Grupos de jovens religiosas
saem em tocaia pela noite para punir e converter pecadoras desvirtuadas. O
esforço da lei é conduzido por vigilantes, grupos de homens jovens com
aparência militar e truculência nas suas ações. A violência é crua, permitida
em nome do que rege a sociedade, a "moral e os bons costumes".
É nesse contexto que a jovem Mari (Mariana
Oliveira) começa a sofrer profundas mudanças, e se separar do caminho de
excepcionalidade feminina no qual tanto acreditava. Ela faz parte de um grupo
de garotas que cantam hinos gospel no culto, e também da milícia da fé
que sai de tocaia nas noites da cidade.
A transformação da personagem de Mariana inicia-se
quando ela começa a sentir suas próprias imperfeições. Uma cicatriz no rosto
faz ela repensar sua vida, e acaba começando a trabalhar como enfermeira numa
clínica que trata de pacientes em coma. A clínica assemelha-se a um Limbo,
um reino entre o mundo desperto e dos sonhos - estabelecido pelos longos corredores
vazios, pelas camas dos pacientes perfeitamente dispostas e pelos verdes
profundos que preenchem a fotografia do filme nesses momentos. Sua chefe é
Karen (Joana Medeiros), que traz uma performance bastante idiossincrática
encarnada numa mulher que se porta de uma maneira perturbadoramente serena. E
seu colega enfermeiro é Lucas (Felipe Frazão), com o qual ela começa um
relacionamento afetuoso. Nesse lugar ela encontra refúgio do mundo opressor da
regência moral, no qual vivem suas colegas de grupo gospel.
O filme tem um jogo de iluminação que segue a ideia
posta na cena na qual a amiga de Mariana, Michele (Lara Tremoroux), faz um
vídeo de tutorial de maquiagem, sobre como esconder hematomas e feridas com o
uso de cosméticos. Para esconder os vermelhos e os roxos, é necessário usar uma
base esverdeada. A partir disso, as cores são estabelecidas como elementos de
significação; a violência do roxo, a luxúria e o desejo no vermelho, enquanto o
verde predomina no refúgio que Mariana encontra no Limbo da clínica. A
trilha sonora é bastante variada, e co-assinada pela própria Anita, com tons
que lembram as feitas pela banda Goblin para os filmes do diretor
italiano Dario Argento.
Medusa, então, trabalha com muitas boas
ideias, que apesar de impactantes, talvez não sejam utilizadas para melhor
efeito. O roteiro trabalha com muitos temas em sua história, e não consegue
explicitar tão bem toda a sátira concebida. No entanto, o mundo criado é um que
evidencia a opressão sofrida pelas mulheres dentro da moralidade evangélica, em
uma crônica de horror e desespero, num esforço heroico de vislumbrar um caminho
que divirja da tendência que vemos no Brasil atual.
Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.