Biombo Escuro

47ª Mostra de São Paulo

A Batalha da Rua Maria Antônia

por Tiago Ribeiro

29/10/2023; Imagem: Divulgação

Bomba relógio prestes a estourar

Grande importância reside em se observar as diversas formas em que as expressões de um país, suas condições históricas e rituais sociais, se expressam nas telas de cinema. Esse tema é abordado por Eduardo Dias Fonseca em seu livro "O Nacional nos Cinemas Brasileiro e Argentino". Dias explana "(...) a sucessão dos fatos que marcam a potencialidade para a construção da historicidade da nação é o ato constitutivo em si. As guerras, as lutas, as perdas, as glórias, as marcas dos fatos constitutivos do nacional se tornam uma sucessão de eventos que vão criar a conexão entre esses fatos compondo o caráter simbólico incorporado na potência historicista."(p.37)

Em A Batalha da Rua Maria Antônia, filme dirigido por Vera Egito, temos uma bomba-relógio cuja contagem regressiva se dá em 21 planos sequências que circulam em torno dos eventos do dia 2 de outubro de 1968. O conflito entre estudantes da USP e da Mackenzie se dá numa Rua Maria Antônia mitológica, um ringue que opôs os dois lados que simbolizavam os desconfortos maiores de uma nação em implosão. 

Os camaradas revolucionários da USP se opõe aos estudantes da Mackenzie ligados ao CCC, o Comando de Caça aos Comunistas . É uma oposição que nunca soa simplificadora, sempre atenta às implicações maiores da participação de todos nos eventos desse dia. É interessante observar como a direção de arte consegue recriar a sensação de ser e estar da era retratada, evocando todo ideário de uma época através dos figurinos, penteados e estilizações cênicas. Similarmente, a fotografia caminha junto desses eventos nervosos com precisão, num preto e branco acizentado e no aspecto de produções da época em que transpareceram os fatos. Esse apuro técnico do longa se conectam com a potência de historicidade das imagens discutida por Dias Fonseca, principalmente no sentido de utilizar-se dos símbolos e imanências que definiram a cultura imagética de uma época, reproduzindo os meios que tornaram-se memória, vestígios do que foi.  

Vera Egito nos poupa de excessos e de enrolações; sua câmera é impaciente e clama por ação, indo sempre em direção aquilo que move os fatos, que adiciona novas informações e leva os personagens adiante. Ela raramente permanece estática, e a sensação de cinese é uma constante. Similarmente, as pistas sonoras sugerem o rompantes violentos que definiram os conflitos do dia 2 de outubro. Um coquetel molotov jogado pelo CCC magnetiza toda cena em torno do clamor desesperador que o som das chamas proporciona.

É dia de eleição para os revolucionários, e os integrantes do movimento estudantil se mobilizam para garantir o zelo do processo. Surgem figuras como o líder do movimento estudantil, e da estudante caloura que hesita em tomar parte das lutas que parecem centrais da vida universitária. Esses retratos de tipos da época vivem suas vidas próprias dentro da convulsão social em que habitam, com as decepções amorosas e dilemas existenciais tão comuns ao espaço universitário sendo centrais em suas vidas. Isso nos oferece uma dimensão dos personagens para além de sua significação como agentes históricos, refletindo as inquietações pessoais daqueles que sobreviveram aquela época.

A Batalha da Rua Maria Antônia transcende qualquer tipo de estigma criado sobre filmes que abordam o ano de 1968. Não há uma busca pelo aprazível, pelo fato consumado. Não há a intenção de se fazer uma reconstituição exata, mas sim uma de encontrar as grandes histórias que começaram ali, teatralizando o papel de seus protagonistas. A vontade é de transmitir a sensação de se estar dentro de um furacão, enquanto ele se forma.

A condição da universidade como último espaço de resistência à manopla cada vez mais presente da ditadura é evidente. Pelos corredores se ouvem os clamores de professores que dizem em suas aulas que, caso nada seja feito, todos eles serão presos e impedidos de se expressar em sua arte. Em outro momento, os estudantes da USP aquiescem em uma calmaria antes da tempestade, enquanto uma menina tira em um violão cordas imprecisas e hesitantes de Roda-Viva, canção de Chico Buarque que funciona como leit motif do filme. 

Naquele prédio da USP residia a última região habitável para aqueles que se opunham ao modo de vida imposto pela ditadura militar, que à época dos eventos retratados se via na iminência de virar em sua esquina mais radical, promulgando o Ato Institucional Número 5 em dezembro de 1968. Funcionado tanto como prenúncio quanto como triste ressaibo, os eventos fabulados por Vera Egito se justapõe à experiência de nossos tempos, como fragmentos de uma canção que não conseguiu se iniciar. O que restam são as histórias daqueles que araram um país em terra arrasada, últimos baluartes que combatiam aquilo que estava por vir.