Biombo Escuro

festival do rio

Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental

por Tiago Ribeiro

16/12/2021; Foto: Divulgação

A mais nova iteração da filmografia do romeno Radu Jude é Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental (2021), um filme que é mais do que uma coisa só, borrando linhas entre documentário, ficção, ensaio e protesto. É um filme que trata da Romênia, numa investigação satírica sobre o cerne ideológico de uma sociedade reacionária e conservadora, refém de um passado autoritário e racista.

O ponto de partida da investigação de Jude é o sexo, e a repressão coletiva dos romenos em ligar com ele. A cena inicial, explícita e na estética da pornografia amadora, já pretende desarmar qualquer tipo de impedimento que possa existir. O sexo está posto como é, e deve ser discutido. A força iconográfica do sexo em Má Sorte remete aos filmes do cineasta japonês Nagisa Ōshima, diretor de clássicos como O Império da Paixão (1978), inspiração já comentada pelo romeno.

A seguir, o longa divide-se em três atos, extremamente distintos. No primeiro ato, temos Emilia Cilibiu (Katia Pascariu), professora de colegial que estrela o vídeo de sexo do início, andando pelas ruas de Bucareste. Tudo em diversos planos abertos, nos quais a mulher se mistura em meio a cidade e ao ir e vir do dia. Os imensos outdoors subliminares, os corpos pequenos em carros grandes, a hostilidade e raiva masculina - todos são vistas frequentes na andança nervosa de Emilia pela cidade. Nesse primeiro ato, temos o universo ficcional do filme posto dentro da realidade crua, integrando-se a ela e buscando evidenciar as expressões diárias do reacionarismo social.

O segundo ato é um verdadeiro ensaio fílmico sobre a modernidade de um mundo refém do crescimento da extrema direita. Aqui vale tudo, desde imagens de arquivo da Segunda Guerra Mundial até memes. Essa parte é um deleite, assemelhando-se a navegar pela timeline de uma rede social. Trechos pequenos e pensamentos rápidos sobre os mais diversos tópicos - teorias, opiniões, ciência, história, críticas etc. As palavras que atravessam o tempo em pequenos trechos de poucos segundos. Tudo muito rápido, mas nem um pouco passageiro. O passado é difícil de ser superado.

Má Sorte no Sexo culmina no último ato num espetáculo teatral, perfeitamente complementar a realidade posta no primeiro. O palco da peça é o colégio no qual Emilia leciona, enquanto os pais julgam se ela deve ser afastada de seu cargo após seu vídeo de sexo ter vazado. Existe algo sobre como uma "reunião de pais" pode servir como um microcosmo da sociedade. A comédia performática é entregue com perfeição. Esse ato é como Escolinha do Professor Raimundo seria se tivesse culhões para de fato articular alguma coisa sobre a sociedade, num misto de sátira e vaudeville trágicos. Um gracejo que evita a lágrima.

No entanto, talvez o que perpassa todo o filme seja a realidade estética e espiritual da pandemia. Integrar máscaras e distanciamento social ao trabalho dos atores em cena localiza o filme em um momento bem específico. Um momento em que não apenas a Romênia, mas todo o mundo sofre com uma nova onda autoritária e reacionária. E o filme argumenta contra isso em sua própria estrutura, fazendo o que a sociedade tem medo de fazer - vendo sexo como natural e parte da vida. Tudo isso com comentários espertinhos e engenhosidade na montagem. Radu Jude levanta o escudo espelho de Perseu para a trágica realidade de um mundo que se desfaz em meio a Covid-19.

 

    Tiago ribeiro

    Editor, Redator e Repórter

    Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.