Biombo Escuro

25ª Mostra de Tiradentes

Carro rei

por Tiago Ribeiro

31/01/2022; Foto: Divulgação

A máquina e o homem em uma alegoria sobre a realidade brasileira moderna

Há algo de bastante curioso no mais recente longa de Renata Pinheiro, Carro Rei(2021). As inusitadas semelhanças com Titane(2021), de Julia Ducournau, surgem de repente no decorrer do filme, e soam como coincidências captadas e traduzidas do zeitgeist. A relação dos corpos com as máquinas firmam terrenos para ambos os filmes construírem suas alegorias. Se Titane se volta para questões do indivíduo e de natureza psicológica, como a dismorfia corporal e relações freudianas, Carro Rei se preocupa em trabalhar suas alegorias para fazer uma afirmação sobre o coletivo. Partindo desse princípio da relação do homem com a máquina, tem-se dois filmes que indubitavelmente deixaram o espectador impressionado com a pura força de suas iconografias.

Tratando especificamente de Carro Rei, o enredo envolve a relação de Uno(Luciano Pedro Júnior) com um carro de seu pai, que ele conseguia ouvir, algo que por si só ecoa Christine(1983) de John Carpenter. Uno cresce e opta por fazer faculdade de agroecologia e agrofloresta, em oposição ao pai, que desejava que ele fizesse administração de empresas. O longa, no entanto, entra em um modo de intensa piração quando o protagonista começa junto com o tio Zé Macaco(Matheus Nachtergele) a envisionar o Carro Rei, capaz de falar, ouvir e sentir.

O que se segue é uma revolução as avessas, que chama atenção do poder empresarial capitalista e se legitima em um regozijo pela máquina, que torna-se mais humanizada com seus sentimentos e palavras. Assim, Carro Rei vai lentamente se tornando uma ficção científica com temas que remetem a obra de Isaac Asimov para tentar pôr na tela eventos que acometem o Brasil moderno. Em uma passagem particularmente marcante, os mecânicos que trabalham para a companhia começam a fazer uma espécie de dança robótica e sincronizada em veneração ao Carro Rei, enquanto ressoa o hino nacional. Nesta cena percebe-se a dimensão que a alegoria do filme aborda sobre o coletivo - a ascensão de forças autoritárias e nacionalistas no campo político nacional, e o seu efeito sobre as características rituais e comportamentais dos corpos.

No entanto, apesar de construir uma afirmação importante, o filme esbarra em diversos empecilhos que prejudicam severamente o seu caminhar. O protagonista é extremamente desinteressante e apenas conduz a história, que também não progride da forma mais desenvolta. O modo como algumas cenas são construídas também deixa a desejar, assim como a fotografia, que não consegue fazer justiça a toda potência iconográfica que enquadra.

Carro Rei acaba por ser um filme que tem algo importante a dizer e que tem momentos bem marcantes, mas que progridem de forma errático e esvaziam o filme de graça. Pinheiro trabalha com bons conceitos de cena e os perde logo na sequência, sem encontrar um modo único de conduzir a história. Dentre os dois filmes centrados em torno de carros como alegoria, fico com Titane como o que consegue melhor convencionar seu mundo e entregar um universo pulsante e perturbador.

Tiago ribeiro

Editor, Redator e Repórter

Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.