Biombo Escuro

12º Olhar de Cinema

Lugar Seguro

por Tiago Ribeiro

02/07/2023; Foto: Olhar de Cinema

A tristeza do Outro

Existem formas bastante maleáveis de se encarar a morte, variando imensamente de pessoa para pessoa e de cultura para cultura. Diferentes tradições a entendem das mais diversas maneiras, e por isso os rituais que a cercam também se expressam de diversas formas. O escritor norueguês Karl Ove Knausgård, logo no início de sua série de livros Minha Luta, reflete sobre a condição de uma sociedade que prefere omitir a morte, desviando o olhar de tudo que a circunda. O ponto principal é que, no mundo ocidental moderno, a morte é propositalmente afastada do crivo público através de simbolismos que a amenizam. Essa atitude diante dela torna seu entendimento mais distante, e principalmente sua superação mais difícil. Em um certo ponto o autor sugere, inclusive, que caso alguém venha a falecer durante uma sessão de cinema, que se permita que o corpo permaneça em seu assento até o fim de sessão, para que não se interrompa a experiência cinematográfica.

Essa questão posta por Knausgård se reflete em tabus e imposições limitantes que circundam a morte. Influi, inclusive, em como a legislação de um país encara o suicídio, a infame morte auto infringida. Em Gosto de Cereja, o cineasta iraniano Abbas Kiarostami reflete sobre essa condição em seu próprio país, a partir de um personagem em busca de alguém que o auxilie no seu desejo de acabar com a própria vida. No Irã, o suicídio é criminalizado, oferecendo severidade diante daqueles que eventualmente ajudem alguém a cometer o ato. Essa imposição dificulta imensamente a concretização do desejo final do Sr. Badii, que oferece a diferentes figuras uma generosa bonificação em dinheiro caso ousem ajudá-lo a concretizar seu suicídio. Kiarostami extrai de cada encontro o parecer que cada um tem diante da vida, e principalmente o medo com o qual muitos encaram a morte, sempre com um personagem diferente com o qual o Sr. Badii encontra enquanto atravessa as montanhas persas com seu SUV. Há muito a se pensar sobre sacralidade e as noções religiosas de transcendência, que por vezes influem nos limites da liberdade humana. Alguns países europeus regulamentam o suicídio assistido como legal, mas em nenhum lugar existe um consenso sobre como se lidar com o suicídio. Não poderia ser diferente, visto que tanto está em jogo.

Distante de qualquer inibição diante da morte está Lugar Seguro, longa de estreia do cineasta croata Juraj Lerotić. Tirando sua história de uma experiência real, ele opta por enfrentar seus demônios interpretando a si mesmo diante de uma situação vivida com seu irmão. A tentativa de suicídio do mesmo faz Lerotić se desdobrar para tentar salvá-lo, correndo na tentativa de impedir que ela se concretizasse. A reconstituição é feita a partir de uma linguagem sóbria e realista, com muitos planos abertos e cores dessaturadas. Há pouco para se distrair dos eventos que transpiram, pela segunda vez para o diretor que se coloca no meio de tudo. Há um profundo senso de desespero e tristeza em tudo que circunda esse trecho inicial do filme.

Lerotić impõe limites para seu realismo, no entanto. Quando sua cabeça esfria vemos um grau de subjetividade maior entrar em jogo, e é nesse ponto que seu longa fica mais interessante. Principalmente porque a subjetividade é extremamente sufocante, visto que ele não consegue acessar exatamente o que está acontecendo na dimensão do outro. A tristeza de seu irmão paira como uma tempestade de raios ao fundo de Lugar Seguro, mas nunca tornando-se palpável. Seu irmão dentro da diegese é Damir, extremamente silencioso e raramente toma a frente das sequências, deixando para a cabeça de Lerotić e da audiência tentar juntar as peças para entendê-lo. Em certo ponto, durante uma breve troca com seu irmão, o personagem de Lerotić, tomando um passo para o não-realismo, comenta sobre o controle que exerce sobre tudo que Damir pensa e diz, relatando a angústia de não poder entender a dimensão real do que se passa com o outro.

Essa impossibilidade de alcançar a tristeza colossal que Damir sente constantemente torna tudo amaldiçoado, condenando tudo a constante iminência de uma tragédia maior. Quando a mãe dos dois chega, as interações entre os atores parecem carregar um peso ainda maior, em um esforço do diretor de transmitir os sentimentos acumulados pelos anos de convívio familiar. 

A dilatação temporal começa a se tornar um fator crucial para a continuidade do filme, conforme a pequena família tem de lidar com as imposições do estado croata diante do suicídio. A quem recai a responsabilidade de impedir que alguém tire sua própria vida? E quem é melhor apto a manter essa garantia? 

Muito sai do poço cavado pelo drama reencenado de Lerotić, da dor projetada em tela. De certo modo, Lerotić parece estar usando sua arte como instrumento para lidar com seu trauma, com sua incompreensão diante da dor do outro. Ele não exita em intervir na realidade, tomando curvas irrealistas para dizer aquilo que gostaria de ter dito. Mas o momento passou, e apenas os que ficaram permanecem em suas buscas por um refúgio das perdições terrenas.