Biombo Escuro

26ª Mostra de Tiradentes

Vermelho Bruto

por João Pedro Rodriguez

03/02/2023, Foto: Divulgação

Como um tema se torna digno de relevância para a sociedade e para a História? Como as diferentes formas de abordagem indicam o tratamento justo do seu tema – uma vez que podem rapidamente estar fazendo interseção com a zona das meras convenções atenuadoras da linguagem? Talvez seja inadequado começar a pensar a respeito de Vermelho Bruto pela constatação de que o princípio do gesto do filme, que resultou neste colosso de 205 minutos exibido na sessão Aurora da Mostra de Tiradentes, possuía um ponto de retorno bastante palpável no mundo exterior, – as existências reais de quatro mulheres em Brasília, no DF, e seu processo de gravidez na adolescência – e bem poderia ter levado a algum tipo de documentário. Mas também pode ser interessante ter justamente esse ponto de partida em mente para perceber melhor as camadas do processo que gestou a obra e sua vocação experimental.

O encontro entre a realizadora, Amanda Devulsky, e as quatro personagens, Alessa, Eunice, Fabiana e Jô, se deu há 7 anos atrás por alguns cartazes espalhados pela cidade com a chamada para o filme. Este passo já tem alguma dose de acaso, mas principalmente diz de como se cruzam os caminhos no labirinto urbano. A relação entre elas foi se desenvolvendo pelas conversas e pelas câmeras digitais que foram entregues a cada uma para registrar o que quisessem ou desejassem, sem um critério e sem enfoques dirigidos; a intimidade, portanto, sendo fundada nessa troca livre de imagens e vivências. O cerne da proposta é a operação que vai ser efetuada, então, sobre este extenso arquivo, formado por todas essas imagens coletadas pelas câmeras portáteis nos últimos anos, bem como pelos arquivos pessoais e domésticos feitos ao longo da vida dessas mulheres, e até mesmo por outras imagens diversas, vindas de fora. Tudo isso será dissolvido numa espécie de amálgama, num tecido que não deseja oferecer pontos onde se fixar, que evita se organizar ou esboçar uma estrutura.

Na camada sonora vêm as vozes, a fala dessas mulheres, que nos guiam na travessia do filme. Revivem suas histórias de vida, tendo cada uma vindo de classes e contextos diferentes, mas ligadas pelo destino comum de gerar um filho ainda jovens, em um mesmo momento da história do Brasil, o período da redemocratização (1985-1995). Existe a vontade, portanto, de pensar esse atravessamento da macro-história – ainda mais por quem experimentou-a em Brasília, centro irradiador das narrativas mais imperativas de nação – pelo mais microscópico, pelo caótico e puramente sensorial que constitui o grosso da vida de alguém, sobretudo na camada imagética: por exemplo, o plano da volta para casa do trabalho, que nos leva a refazer o percurso integral, mantido em sua duração, e sentir aquela rua, aquela chuva. Por isso, o narrar desapressado, que traz lembranças com poucos ou muitos detalhes, imprecisões, inconstâncias, como expressão de suas subjetividades, será enfim, na montagem, totalmente costurado de modo a imbricar, ou sobrepor, os percursos individuais em um só. O ápice dessa atitude não-individualizante é como, ao longo do filme inteiro, praticamente não vemos seus rostos. O que passa não fica sendo associado (e reduzido) a uma face humana.

Enquanto viajamos por essa memória que é de cada uma e de nenhuma, o fluxo das imagens também vai misturando o arquivo de épocas e formatos diversos, transitando sem uma premissa de correspondência imediata, ilustrativa ou conteudista, entre o que ouvimos e o que vemos. Na verdade, o gesto mais radical em relação às imagens tem a ver com uma ação de aprofundamento nas superfícies, que amplia muitas delas até perder de vista os contornos que permitiriam distinguir algo, num impulso realmente antifigurativo. As vezes vemos um pedaço de um objeto, de uma paisagem ou de uma pessoa, mas o filme não se pauta nessa identificação entre isso e aquilo. Antes Vermelho Bruto sente-se à vontade diluindo as linhas até virarem porções indelimitadas, granulações informes de cores e texturas. No debate que aconteceu na

manhã seguinte à exibição do filme em Tiradentes, Darks Miranda – que assina a montagem do filme junto com Amanda, vindas ambas de trajetórias também nas artes visuais – contou que uma das questões colocadas no processo de feitura era sobre como definir o que seria informação ou não em uma imagem, o que seria essencial ou não. A escolha, é evidente, foi por essa exploração muito livre da matéria visual, que faz as imagens valerem por sua potência plástica mesmo. A própria materialidade dessa imagem de câmeras portáteis, com formato mais quadrado e média resolução, sua textura tremida, borrada, por estar sempre colada ao corpo, já sugere que seu uso não seja tanto por dar a ver as coisas com nitidez e transparência, e mais enquanto esse sensor que absorve vibrações, entornos, decodifica paisagens, enfim; uma máquina que prova a passagem dos corpos pelo espaço e acaba criando um contra-arquivo para a história que será contada no futuro. Retalhos de espaços-tempo vividos. E a montagem tanto pode acelerar em cortes e transições, quanto demorar-se desprendidamente em um plano e deixá-lo correr: como quando, em certa altura, o filme apenas pára no plano de um banho, enquadrando um ombro, com três passarinhos tatuados e a água escorrendo, e nos deixa alguns minutos naquele silêncio.

O filme não quer, de forma alguma, domar a força que pode surgir dessas visões. Junto a ambiências sonoras imersivas e tensas por vezes, trabalhadas sobre o som captado, esse fluxo de imagens e sensações leva a um estado semiconsciente de recepção onde uma imagem, uma situação, uma frase ou uma cor, inseridas nessa configuração aberta, pode atingir-nos (ou não) com um impacto inesperado: a mim foi particularmente marcante quando, num dos momentos mais pesados de um relato, vemos as imagens de algumas lesmas debaixo d’água. Parece que o filme se afasta do dever de ordenar e encontrar um sentido de finalidade em cada elemento, e se decidiu como o território disposto a receber e concentrar todos estes influxos. E assim, de algum modo, representar o que escapa à capacidade de elaboração quando se pensa o peso de uma vida, a experiência da maternidade, o exame do próprio passado e o destino do país. As escolhas de montagem e de duração, em Vermelho Bruto, atendem a essa sensibilidade – imprescindível sempre que se reivindica o valor de uma experimentação sobre a linguagem – de que as coisas não são simples, explicáveis ou, ao menos, não são tão facilmente explicáveis. Como foi dito no debate, também por Darks Miranda, o trabalho que o filme demanda do espectador tem analogia com outros tipos de trabalho, tematizados pelo filme, como o trabalho de parto e o trabalho doméstico. Não dá pra “dar conta” do que está em jogo aqui, é preciso ser atravessado.