Soa um tanto irônico argumentar que Armageddon Time (2022) é um dos
filmes mais pessoais de James Gray desde Fuga Para Odessa (1994). Pois, cada
obra produzida complementa um mosaico da tragedia americana vista sobre uma
ótica familiar. Com exceção de alguns longas-metragens, o pano de fundo para uma
história de James Gray costuma revelar um lar de descendentes de imigrantes
russos — nesse caso é de Ucrânios —, tentando estabilizar suas relações perante
sonhos distantes. Toda articulação rigorosa pressupõe sempre um regresso ao
classicismo, talvez mais que qualquer cineasta americano hoje, estando a par
apenas com Clint Eastwood, ainda que de formas bem divergentes. Dado que, se
Cry Macho (2021), por exemplo demonstra um jogo de cena fascinante, simplista e
direto. James Gray é mais rigoroso, mais energético e fresco. Sua ambientação é
explorada à fio por fio, conduzida como um lugar único, tal qual Soberba (1942), de
Orson Welles.
Essa exploração absoluta da residência, porém, acaba sendo sempre uma
armadilha. É uma ambivalência sentimental do aprisionamento mental e familiar e da
reconciliação efêmera dos personagens. Tanto que, a tragedia resulta
ocasionalmente em uma tentativa de fuga da casa, mas que sempre termina no
mesmo lugar. James Gray não só aplicou isso no filme presente, mas como no
restante da sua filmografia: em Amantes (2009), na falha escapada do protagonista
com a amante; em Fuga Para Odessa, do ponto de partida inicial já sendo um
retorno de Tim Roth ao limbo, à sua cidade fatal, proporcionando desastres na
cidade e em sua casa; em Os Donos da Noites (2007), na briga entre irmãos, onde
Joaquim Phoenix tenta se desvincular de Mark Wahlbergh, causando apenas a
morte do pai, e, consequentemente, a reconciliação dos irmãos; em Ad Astra (2019),
no qual Brad Pitt atravessa o universo tentando encontrar seu pai; em Z – A Cidade
Perdida (2016), onde Charlie Hunnam deixa a sua casa constantemente e se
encontra na exploração integral atrás de uma antiga civilização na Amazônia; Na
decadência e corrupção parental em Caminho Sem Volta (2000), resultando na
corrida constante de Mark Wahberlg e na delação conclusiva acerca de seus
semelhantes. O laço familiar, portanto, é algo dado pela vida, sem possibilidade
alguma de controle, de pessoas revestidas de capas pretas e concretas, contra a dor
externa, apenas realçando eventos e tempestades melancólicas.
E é justamente sobre essa camada escura e dura que os personagens
vestem que James Gray trabalha certas mitologias diante dos clichês genéricos: do
Irving Graff (Jeremy Strong), o pai durão, mas com um elo fraco para o seu próprio
passado; de Esther Graff (Anne Hathaway), a mãe cuidadora que deposita as
expectativas futuras nos filhos; em Ted Graff (Ryan Sell), o irmão brigão; e em Aaron
Rabinowitz (Anthony Hopkins), o avô gentil e aberto, o único laço realmente forte do
personagem principal na obra. Para a criança protagonista, Paul Graff (Michael
Banks Repeta), parece ser, praticamente, ações de Deuses absolutos remediando e
controlando o seu estar, na impossibilidade de ganhar algum jogo de poder. A
abertura do longa na cena da sala de aula revela isso, no primeiro dia da escola,
com um professor que inevitavelmente acha ter conhecimento incondicional e
impiedoso sobre tudo e todos, humilhando alguns alunos. Portanto é sobre
exatamente essas paredes cinzentas dos adultos e seus furos que os garotos
precisam lidar. A força para o prosseguimento da vida se encontra essencialmente
na possibilidade de cada membro e individuo, jovem ou adulto, no depósito dos
desejos, no sonho americano, expondo o cotidiano como uma luta paulatina pela
felicidade distante. Aprendendo e, eventualmente, compreendendo que seu lugar no
universo é de maior privilégio que de outras pessoas, assim infiltrando certas
questões raciais, pertinentes à época de Armageddon Time, os anos de 1980. No
final, o próprio cenário de batalha apocalíptica proferida ao titula — que também
rememora um discurso de Ronald Reagan citando o armagedon —, se encontra no
dia a dia da família.
Entre brigas e batalhas contra gigantes e Golias, portanto, o maior efeito
derradeiro é a perda interior de uma inocência infantil demasiado grave. Do mesmo
modo que em Ladroes de Bicicleta (Vittorio de Sica, 1948) a situação social e
econômica demarcava bem as ações e qualidades de vida miserável do pós-guerra,
resultando em furto e encarceramento do pai. Armageddon Time parte de
características similares, de dentro do gueto de Nova York e da inicialização do
capitalismo tardio, que acaba também com um roubo e prisão de um dos
personagens, o Johnny (Jaylin Webb). Há uma pressão externa, uma bomba relógio
prestes a explodir, uma guerra realmente de Deus contra o mundo, é a borbulhação
da tensão racial e política americana pesando na crise intrafamiliar.
Retornando para os membros da residência, contudo, longe de condená-los
completamente, James Gray enriquece um traço humanista extremamente peculiar
da sua filmografia. Justamente por reconstruir esses arquétipos em um coming of
age culpabilizado pelo contexto externo. Houve casos excessivos de incompreensão
ao filme, ditando-o de racista por abordar uma situação com personagens que
realmente são racistas implicitamente. Mas tal condição é absolutamente criticada
em Armageddon Time, o cineasta estadunidense clarifica a conjuntura
discriminadora racialmente como algo estrutural, entranhado em uma sociedade, em
um país que à somente a poucos anos havia abolido a lei de segregação racial nos
seus estados. À vista disso, se torna evidente a condenação dos eventos, a escola
particular é tratada como piada, rente ao aparecimento da Maryanne Trump (Jessica
Chastain) e de Fred Trump (John Diehl) — no qual o protagonista abandona o seu
discurso na última cena —, da conversa do avô — o único membro da família que
James Gray concede empatia total — com o neto, repudiando cabalmente os atos
racistas das pessoas em Nova York. Talvez, na sequência mais evidente, na prisão
do melhor amigo negro, o Johnny, revelando todo o discurso de privilégio que ronda
a família. Dado que, não importa, necessariamente, o quão bravamente você lute,
ou o quanto você necessita de uma mudança, os personagens ali já estão em um
passo à frente de outros indivíduos precisamente devido à sua condição social e
racial. No desenlace, é um ataque muito fundamentado e direto à certas pessoas e
entidades bem-sucedidas que ajudaram a fundar e alavancar esse status nas
comunidades dos Estados Unidos.
Uma outra problemática que pode ser erroneamente atribuída por olhos mais
desatentos é uma possível ligação com Belfast (2021). Todavia, superficialmente até
pode haver alguma conexão mais direta, principalmente no âmago de suas
respectivas premissas, mas para por aí: qualquer tentativa de comparação entre
ambos é generalizar demais dois autores completamente desconexos. Enquanto
Kenneth Branagh produz algo bem mais genérico, fetishizado, excêntrico,
compactuando com tudo que o cinema no capitalismo tardio tem de pior, isso é, a
publicidade, referencial insensato, inocente, repleto de um academicismo
maneirado. Armageddon Time segue a mesma lógica de seus filmes anteriores: a
maturidade do melodrama clássico, refinado, talvez até quintessenciado. Junto a
pouquíssimos, James Gray é passível de ser colocado ao lado dos que fazem jus a
uma ideia exacerbadamente próxima ao Mac-mahonismo.
À vista desse anacronismo contemporâneo, faz sentido dizer que não
somente a vida daquela comunidade representada na obra de 2022 está diante de
um embate dificílimo, onde todas as cartas estão em jogo. O fim dos tempos já é o
presente, a batalha com Deus é em cada atitude dos personagens, na tentativa de
escapar de uma crise moral e alcançar seus mitos profundos; mas também a própria
caminhada de James Gray é uma luta saudosista e arcaica, realizando filmes em
uma direção completamente oposta à maré atual, transferindo os antigos
manuscritos e modelos de uma arte morta, na tentativa de rememorá-las, lembrar a
todos do tempo passado, a partir de um povo sem memória. Talvez, por isso, o
diretor seja um tanto desconhecido para um público geral, dado que, de fato, é
assumido um lado totalmente academicista consciente, ficando pequeno ao lado de
gigantes inconsequentes na Hollywood contemporânea.