Biombo Escuro

Estreias da Semana

Armageddon Time

por Alberto A. Mauad

09/11/2022; Foto: Divulgação

Enfrentar Deus e o Mundo

Soa um tanto irônico argumentar que Armageddon Time (2022) é um dos filmes mais pessoais de James Gray desde Fuga Para Odessa (1994). Pois, cada obra produzida complementa um mosaico da tragedia americana vista sobre uma ótica familiar. Com exceção de alguns longas-metragens, o pano de fundo para uma história de James Gray costuma revelar um lar de descendentes de imigrantes russos — nesse caso é de Ucrânios —, tentando estabilizar suas relações perante sonhos distantes. Toda articulação rigorosa pressupõe sempre um regresso ao classicismo, talvez mais que qualquer cineasta americano hoje, estando a par apenas com Clint Eastwood, ainda que de formas bem divergentes. Dado que, se Cry Macho (2021), por exemplo demonstra um jogo de cena fascinante, simplista e direto. James Gray é mais rigoroso, mais energético e fresco. Sua ambientação é explorada à fio por fio, conduzida como um lugar único, tal qual Soberba (1942), de Orson Welles.

Essa exploração absoluta da residência, porém, acaba sendo sempre uma armadilha. É uma ambivalência sentimental do aprisionamento mental e familiar e da reconciliação efêmera dos personagens. Tanto que, a tragedia resulta ocasionalmente em uma tentativa de fuga da casa, mas que sempre termina no mesmo lugar. James Gray não só aplicou isso no filme presente, mas como no restante da sua filmografia: em Amantes (2009), na falha escapada do protagonista com a amante; em Fuga Para Odessa, do ponto de partida inicial já sendo um retorno de Tim Roth ao limbo, à sua cidade fatal, proporcionando desastres na cidade e em sua casa; em Os Donos da Noites (2007), na briga entre irmãos, onde Joaquim Phoenix tenta se desvincular de Mark Wahlbergh, causando apenas a morte do pai, e, consequentemente, a reconciliação dos irmãos; em Ad Astra (2019), no qual Brad Pitt atravessa o universo tentando encontrar seu pai; em Z – A Cidade Perdida (2016), onde Charlie Hunnam deixa a sua casa constantemente e se encontra na exploração integral atrás de uma antiga civilização na Amazônia; Na decadência e corrupção parental em Caminho Sem Volta (2000), resultando na corrida constante de Mark Wahberlg e na delação conclusiva acerca de seus semelhantes. O laço familiar, portanto, é algo dado pela vida, sem possibilidade alguma de controle, de pessoas revestidas de capas pretas e concretas, contra a dor externa, apenas realçando eventos e tempestades melancólicas.

E é justamente sobre essa camada escura e dura que os personagens vestem que James Gray trabalha certas mitologias diante dos clichês genéricos: do Irving Graff (Jeremy Strong), o pai durão, mas com um elo fraco para o seu próprio passado; de Esther Graff (Anne Hathaway), a mãe cuidadora que deposita as expectativas futuras nos filhos; em Ted Graff (Ryan Sell), o irmão brigão; e em Aaron Rabinowitz (Anthony Hopkins), o avô gentil e aberto, o único laço realmente forte do personagem principal na obra. Para a criança protagonista, Paul Graff (Michael Banks Repeta), parece ser, praticamente, ações de Deuses absolutos remediando e controlando o seu estar, na impossibilidade de ganhar algum jogo de poder. A abertura do longa na cena da sala de aula revela isso, no primeiro dia da escola, com um professor que inevitavelmente acha ter conhecimento incondicional e impiedoso sobre tudo e todos, humilhando alguns alunos. Portanto é sobre exatamente essas paredes cinzentas dos adultos e seus furos que os garotos precisam lidar. A força para o prosseguimento da vida se encontra essencialmente na possibilidade de cada membro e individuo, jovem ou adulto, no depósito dos desejos, no sonho americano, expondo o cotidiano como uma luta paulatina pela felicidade distante. Aprendendo e, eventualmente, compreendendo que seu lugar no universo é de maior privilégio que de outras pessoas, assim infiltrando certas questões raciais, pertinentes à época de Armageddon Time, os anos de 1980. No final, o próprio cenário de batalha apocalíptica proferida ao titula — que também rememora um discurso de Ronald Reagan citando o armagedon —, se encontra no dia a dia da família.

Entre brigas e batalhas contra gigantes e Golias, portanto, o maior efeito derradeiro é a perda interior de uma inocência infantil demasiado grave. Do mesmo modo que em Ladroes de Bicicleta (Vittorio de Sica, 1948) a situação social e econômica demarcava bem as ações e qualidades de vida miserável do pós-guerra, resultando em furto e encarceramento do pai. Armageddon Time parte de características similares, de dentro do gueto de Nova York e da inicialização do capitalismo tardio, que acaba também com um roubo e prisão de um dos personagens, o Johnny (Jaylin Webb). Há uma pressão externa, uma bomba relógio prestes a explodir, uma guerra realmente de Deus contra o mundo, é a borbulhação da tensão racial e política americana pesando na crise intrafamiliar.

Retornando para os membros da residência, contudo, longe de condená-los completamente, James Gray enriquece um traço humanista extremamente peculiar da sua filmografia. Justamente por reconstruir esses arquétipos em um coming of age culpabilizado pelo contexto externo. Houve casos excessivos de incompreensão ao filme, ditando-o de racista por abordar uma situação com personagens que realmente são racistas implicitamente. Mas tal condição é absolutamente criticada em Armageddon Time, o cineasta estadunidense clarifica a conjuntura discriminadora racialmente como algo estrutural, entranhado em uma sociedade, em um país que à somente a poucos anos havia abolido a lei de segregação racial nos seus estados. À vista disso, se torna evidente a condenação dos eventos, a escola particular é tratada como piada, rente ao aparecimento da Maryanne Trump (Jessica Chastain) e de Fred Trump (John Diehl) — no qual o protagonista abandona o seu discurso na última cena —, da conversa do avô — o único membro da família que James Gray concede empatia total — com o neto, repudiando cabalmente os atos racistas das pessoas em Nova York. Talvez, na sequência mais evidente, na prisão do melhor amigo negro, o Johnny, revelando todo o discurso de privilégio que ronda a família. Dado que, não importa, necessariamente, o quão bravamente você lute, ou o quanto você necessita de uma mudança, os personagens ali já estão em um passo à frente de outros indivíduos precisamente devido à sua condição social e racial. No desenlace, é um ataque muito fundamentado e direto à certas pessoas e entidades bem-sucedidas que ajudaram a fundar e alavancar esse status nas comunidades dos Estados Unidos.

Uma outra problemática que pode ser erroneamente atribuída por olhos mais desatentos é uma possível ligação com Belfast (2021). Todavia, superficialmente até pode haver alguma conexão mais direta, principalmente no âmago de suas respectivas premissas, mas para por aí: qualquer tentativa de comparação entre ambos é generalizar demais dois autores completamente desconexos. Enquanto Kenneth Branagh produz algo bem mais genérico, fetishizado, excêntrico, compactuando com tudo que o cinema no capitalismo tardio tem de pior, isso é, a publicidade, referencial insensato, inocente, repleto de um academicismo maneirado. Armageddon Time segue a mesma lógica de seus filmes anteriores: a maturidade do melodrama clássico, refinado, talvez até quintessenciado. Junto a pouquíssimos, James Gray é passível de ser colocado ao lado dos que fazem jus a uma ideia exacerbadamente próxima ao Mac-mahonismo.

À vista desse anacronismo contemporâneo, faz sentido dizer que não somente a vida daquela comunidade representada na obra de 2022 está diante de um embate dificílimo, onde todas as cartas estão em jogo. O fim dos tempos já é o presente, a batalha com Deus é em cada atitude dos personagens, na tentativa de escapar de uma crise moral e alcançar seus mitos profundos; mas também a própria caminhada de James Gray é uma luta saudosista e arcaica, realizando filmes em uma direção completamente oposta à maré atual, transferindo os antigos manuscritos e modelos de uma arte morta, na tentativa de rememorá-las, lembrar a todos do tempo passado, a partir de um povo sem memória. Talvez, por isso, o diretor seja um tanto desconhecido para um público geral, dado que, de fato, é assumido um lado totalmente academicista consciente, ficando pequeno ao lado de gigantes inconsequentes na Hollywood contemporânea.

Alberto A. Mauad

Redator

Estudante de cinema na PUC-Rio, redator do Biombo Escuro e cineasta. Tem interesse pelas áreas de linguagem, história e autorismo cinematográfico.