Biombo Escuro

DImensões Políticas do Cinema Brasileiro

Estigmas do road movie brasileiro: os ideogramas do nomadismo e os bandeirantes do asfalto

por Tiago Ribeiro

02/11/2022

As demandas de uma época, por muitas vezes, surgem das interpretações realizadas sobre a mesma. A narrativa hegemônica se desconstrói em diversas versões, produzidas pelas mais diversas fontes e vontades históricas. Selecionar qual interpretação é mais precisa se mostra como um desafio que exige profundo discernimento e conhecimento histórico. Com o advento do cinema, e principalmente do acesso a ferramentas de registros portáteis e móveis como a câmera Super 8, a produção de versões diferentes da realidade posta passou a tornar-se comum e demasiado diversa. Para o bem e para o mal, a possibilidade de construir uma realidade contida no registro individual revolucionou e potencializou imensamente a construção narrativa do ser humano. Da mesma forma, um parecer sobre a realidade que se mostra incongruente com o que é imposto, se mostra subversiva e é silenciada ou marginalizada por meio de forças de opressão. A censura na ditadura militar do Brasil funcionou como instrumento de supressão das múltiplas narrativas que surgiam e contestavam a narrativa hegemônica.

Nesse âmbito, com o pretexto de desconstruir a narrativa criada pelo regime militar brasileiro na década de 70, que propagandeava o "milagre econômico" através de obras como a da BR-230, Jorge Bodanzky e Orlando Senna realizaram Iracema, Uma Transa Amazônica(1974). Operando de modo que a ficção suspenda o véu através do qual a realidade possa ser dita, o trabalho dos dois diretores paulistas se prova uma imensa prova histórica da farsa divulgada pelo regime militar, e um veículo através do qual pode-se testemunhar os profundos impactos que os bandeirantes do asfalto, em um esforço histórico de ocupação do norte brasileiro, levaram à região. Justamente por confrontar tão diretamente mentiras propagadas pela ditadura, o longa-metragem foi censurado, apenas sendo exibido 6 anos após sua conclusão.

Chegando implacavelmente com seus motores esfumaçando carbono tóxico, vem o autêntico bandeirante do asfalto o personagem de Sebastião da Silva, o "Tião Brasil Grande"(uma brincadeira com um tosco slogan da ditadura), interpretado por Paulo César Pereio. Tião carrega consigo o arquétipo do gaúcho canastrão, que julga os trabalhadores como preguiçosos enquanto repete os slogans nacionalistas da ditadura. Esse personagem reafirma a ideologia de prosperidade civilizatória, que na semiótica tortuosa da ditadura teve seu significado atrelado à subjugação dos recursos naturais presentes na Floresta Amazônica.

"A natureza é mãe coisa nenhuma

A natureza é meu caminhão,

A natureza é a estrada"

Esbraveja Tião, com bastante ímpeto, como se o mundo se resumisse ao que ele enxerga. Paralelamente, acompanhamos a personagem que dá nome ao filme, Iracema, uma jovem que vive em Belém e testemunha o turbilhão de mudanças que chegam junto das obras da Transamazônica. Funcionando como alegoria mitológica para a fundação do Brasil no romance Iracema de José Alencar, escritor romântico brasileiro, a personagem que dá nome à obra é uma indígena originária do povo Tabajara que se apaixona pelo herói, o português Martim. O amor de ambos representa o encontro que "fundou" o país como conhecemos.

A representação da personagem de Iracema toma formas bastante distintas nas duas histórias. Fugindo do tom épico e idealizado utilizado por Alencar, em Iracema, Uma Transa Amazônica, a personagem aparece como uma prostituta, deturpada pelo seu meio, e que se vê em situações gradualmente mais extremas. A contradição da representação de Alencar é esbravejada por Bodanzky e Senna, que reescrevem o mito sem o tom épico de uma grande lenda européia, mas representando a decadência na qual vivia o país imerso em uma ditadura militar que já durava dez anos, e que empurrava sua agenda destruidora implacavelmente.

Iracema encontra Tião, uma encarnação mais verídica de Martim, e com ele se perde na obra babilônica. O corrompimento de Iracema se dá como a destruição da floresta promovida pela construção da Transamazônica, inacabada até hoje, cinco décadas após a realização do filme. O processo de destruição que tanto empurrou a floresta para o norte foi exposto pela fabulação de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, junto com aqueles que a executaram. A utopia de conectar por terra o oceano Atlântico ao Pacífico se provou como um dos maiores fiascos já promovidos pela mão do homem. O lastro da destruição segue, com o ecossistema amazônico sendo destruído pelo garimpo ilegal, por grileiros e invasores de terras indígenas. A ficcionalização segue como melhor caminho de contestação de uma realidade hegemônica, tecida pelos detentores do poder econômico. O espírito do país que vive em Iracema, ao final do filme, está completamente destroçado, sem dentes, com os cabelos desgrenhados e com uma consciência fugidia, próxima da loucura. É desse modo que se atinge a prosperidade econômica no capitalismo.

Tiago ribeiro

Editor, Redator e Repórter

Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.