Biombo Escuro

27º Festival É Tudo Verdade

A História do Olhar

por Tiago Ribeiro

01/04/2022; Foto: Divulgação

A genealogia da visão por Mark Cousins

Existe algo de muito fascinante nos momentos banais, nos monólogos internos que temos com nós mesmos e no natural fluxo que nossa consciência toma quando em diálogo com si mesma. Em um de seus mais recentes filmes, A História do Olhar(2021), estreia recente de Mark Cousins no 27º Festival É Tudo Verdade, o diretor nos convida para passar 90 minutos junto de seu monólogo interno, em uma exploração imagética sobre o sentido visual do mundo. A sensação é de que estamos na cama com Mark, deitados ao lado dele ouvindo suas asneiras, piras filosóficas e medos existenciais - sendo inclusive assim que boa parte do filme é gravado, com Cousins se dirigindo à câmera enquanto deitado na cama e nu, isolado e solitário no auge do período de lockdown ocorrido durante a pandemia.

Desse ponto de partida, Cousins começa a falar sobre o diagnóstico que o levou a necessidade de se "submeter a faca" e ter que fazer uma cirurgia arriscada. Sendo um cineasta completamente conectado com o sentido da visão, ele compartilha conosco seus temores por perder esse sentido tão caro a ele enquanto vê um vídeo de Ray Charles falando sobre a condição de não enxergar. A partir das abstrações do pianista, Cousins embarca em um exercício de auto ficção, buscando em seu âmago o sentido que criou do mundo a partir do que enxergou ao longo de toda sua vida. "A História do Olhar" é disforme como uma figura de rorschach, um filme ensaio que almeja entre filmagens feitas pelo próprio Cousins, filmes antigos e imagens de arquivo, chegar a uma certa genealogia da visão a partir da própria relação do diretor com o chamado "mundo visual".

Cousins resolve traçar sua genealogia comentando, através da montagem de suas imagens, sobre boa parte das concepções populares e acadêmicas que dizem respeito a percepção da visão. Enquanto nos mostra a filmagem de uma árvore, a voz em off de Cousins questiona se "nós realmente vimos isso?". Entre esses clichês e ideias mais complexas sobre a natureza de apreensão do mundo, o diretor joga com ideias que vão da teoria de aquisição de linguagem de Noam Chomsky até as concepções de cinema de Hugo Munsterberg.

De acordo com J. Dudley Andrew, Munsterberg traz conceitos da psicologia da gestalt para formular teorias sobre a percepção da imagem fílmica. Para Munsterberg, a percepção das imagens em movimento do cinema passam pela questão de figura/fundo e põe a "mente como matéria prima", como define Dudley.

O filme não é mero registro do movimento, mas um registro organizado do modo como a mente cria uma realidade significativa. (Andrew, J. Dudley, 1989. Sobre as teorias de Munsterberg)

Passando por essas concepções, Cousins almeja nos falar sobre a história do seu mundo visual, e consequentemente sobre como construímos nossos próprios mundos visuais. Em certo ponto, o cineasta contrapõe a imagem de Ingrid Bergman em Casablanca(1942) e em Sonata de Outono(1978), e discorre sobre o peso do olhar que a atriz carrega nos diferentes filmes, realizados em um intervalo de 36 anos. O peso do olhar dela é notoriamente outro em Sonata de Outono, mais melancólico e significativo que o olhar esperançoso de sua figura em Casablanca - e Cousins demonstra com esses cortes engenhosos como o peso de tudo que já foi visto permanece no olhar. Esse peso, de carregar o seu próprio mundo visual, se expressa no próprio aparelho com o qual obtemos esse mundo.

Um filme irmão para A História do Olhar é, indubitavelmente, O Homem que É Alto É Feliz?, uma obra experimental na qual Michel Gondry faz animações, com desenhos abstratos e coloridos, de uma conversa que teve com Noam Chomsky. Ambos os filmes partem do princípio de conceber uma realidade menos material, mas igualmente palpável através da visão e da voz, refletindo sobre as imagens e sobre a percepção do mundo.

A História do Olhar nasce do medo de perder aquilo que mais alimentou a expressão artística de Cousins, e é por isso que há tanto em jogo nesse longa. Cousins nos guia pelos cenários feitos por Salvador Dalí para Quando Fala o Coração(1945), de Alfred Hitchcock, explicitando em cada batida de seu filme a tensão de seu medo, a exaustão do lockdown, e a expressividade teórica das teses que constrói com sua linguagem. O slow motion da explosão, as formas desfeitas e o que sobra do que foi. Nada mais natural que o desejo de se tornar uma água viva.

    Tiago ribeiro

    Editor, Redator e Repórter

    Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.