Biombo Escuro

Temporada de Premiações

Nada de Novo no Front

por Tiago Ribeiro

15/03/2023; Foto: Netflix

A tecnicização do caos

Narrativas sobre a guerra estão contidas em sua própria essência. Principalmente porque a guerra precisa se justificar. O assassinato em massa, os sacríficios civis, as perdas econômicas e espirituais. É preciso que haja uma explicação para a barbárie, um mito para que se aceite a necessidade da prática de violência extrema. Não à toa se atribuiu imensa importância à publicidade para se viabilizar os conflitos bélicos, tão presentes nas Grandes Guerras do século passado. Encontrar o inimigo em comum, que deve ser derrotado para a salvação da nação, abastece um furor nacionalista que consegue tornar a violência extrema aceitável, necessária para que se perpetue um ideal. 

Pensando principalmente nos conflitos do século XX, a apreensão da guerra e as ideologias que as circundam foram moldados pelo processo de massificação das mídias e das reproduções. De modo similar à sofistifação das tecnologias armamentistas, o modo de documentar as guerras passou a produzir registros fotográficos e fílmicos cada vez mais numerosos, que fizeram dessas guerras as mais midiatizadas até então. A necessidade de se experienciar a guerra de uma certa distância tornou-se onipresente, assim como as possibilidades de recriá-las se multiplicaram. Simulações de guerras no cosmos digital e as encenações épicas dos conflitos no cinema foram alimento para a fome de destruição da humanidade.

Dentre esses conflitos, a Primeira Grande Guerra, teve grande simbolismo e repercussão diante do restante do século que moldou a modernidade. Foi a guerra mais sangrenta e registrada até então, com um poderio bélico jamais antes visto, que resultou na morte de 17 milhões de pessoas. Dentre tantas baixas e tanto sangue se erguem os soldados alemães de Nada de Novo no Front(2022), de Edward Berger, remake do filme de 1930 com memso nome. Adaptação do romance Im Westen nichts Neues, de Erich Maria Remarch, o longa acompanha os entremeios da ofensiva ocidental alemão, que ia em direção à França. A  campanha do soldado Paul Bäumer nas trincheiras e os tratados e decisões tomadas por oficiais como Matthias Ezberger, interpretado por Daniel Brühl, nos bastidores da guerra são algumas das histórias que levam ao mesmo fim trágico.

O jovem Paul se voluntaria para o exército junto de seus amigos, muito afoitos para servir seu país e tornarem-se heróis de sua nação. Através de um paralelismo construído com a montagem, precede a sequência do alistamento dos jovens uma cena na qual vemos Paul já em conflito, em meio à opressão caótica da guerra, correndo em meio ao som de tiros e explosões. A partir desses contrapontos, Berger realça uma das contradições simbólicas que ecoam pelo seu protagonista, destacando desse modo os sentimentos que levam os homens, e um país, a sua própria ruína. 

Celebrado pela academia por suas virtudes técnicas, o filme alemão não apresenta nada que destoe muito da linguagem comumente aplicada em filmes do gênero, que acabaram se tornando sinônimos de primazia na linguagem técnica cinematográfica, provavelmente devido ao escopo que envolve a recriação da guerra. Sobram os clichês como o som abafado após a explosão de uma granada, ou o plano com corpos amontoados. Algo similar ocorreu alguns anos atrás com "1917", de Sam Mendes, onde o filme levou diversas categorias técnicas na premiação da Academia. O filme do diretor britânico, que também trata de eventos ocorridos na Primeira Grande Guerra, foi um filme de artifícios, distraído demais pelo tropo do plano sequência para elaborar qualquer tipo de discurso que superasse o patriotismo dos vencedores, do esculpimento dos heróis de sua nação.

Uma das distinções de Nada de Novo no Front reside no seu retrato do "lado perdedor" do conflito. A voracidade surge na recriação da guerra de trincheiras, que via com as tecnologias bélicas da época uma encarnação cruel da capacidade humana de matar, como na sequência em que se vê soldados da Entente incinerando com flamethrowers soldados vencidos. Vêm à mente as palavras de Susan Sontag sobre imagens que evidenciam a guerra em "Diante da Dor dos Outros": "É isto o que a guerra faz. E mais isso, também a guerra faz. A guerra dilacera, despedaça. A guerra esfrangalha, eviscera. A guerra calcina. A guerra esquarteja. A guerra devasta".

No entanto, para além dessa recriação tecnicista da guerra, Berger não consegue deixar claro na superfície de seu filme o sentimento de abominar aquilo que recria, virtude de toda grande obra de ficção sobre a guerra, presente em "Matadouro Cinco", de Kurt Vonnegut, e em "A Grande Ilusão", de Jean Renoir. Permanece o espetáculo de sangue, lama e pólvora, conduzido pela premiada trilha cujo leitmotiv se repete com diferentes timbres, por vezes para dar o tom épico, por vezes realçando o drama, trabalhando pouco para além de ser um acompanhamento do restante da orquestra da guerra. A mensagem é difusa, e a guerra parece inevitável: "Isso aqui é como uma febre", diz um dos personagens em certo momento do filme. Talvez a guerra seja inescapável, e destinada a ser perpetuamente onipresente. Mas isso apenas relega à ficção que a recria a responsabilidade de afirmar seu próprio absurdo.

Tiago ribeiro

Editor, Redator e Repórter

Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.