Biombo Escuro

24º FESTIVAL DO RIO

Regra 34

por Guilherme Salomão

10/10/2022; Foto: Divulgação/Festival do Rio

A dualidade em busca do prazer e do ativismo

A popularização de plataformas por assinatura como o “onlyfans”, que permitem a comercialização e consumo de conteúdo pornográfico de forma mais abrangente e “autônoma” pelos criadores de conteúdo e assinantes dos serviços, respectivamente, se solidifica cada vez mais em nossa realidade social contemporânea. Dito isso, tendo em vista que esse componente é um de seus principais pilares, Regra 34 (título que faz referência a uma “regra” da internet que afirma que qualquer objeto ou personagem pode ser associado a pornografia), terceiro longa-metragem da cineasta brasileira Julia Murat, é uma obra que já nasce extremamente atual. Vencedor do Leopardo de Ouro, prêmio máximo do Festival de Cinema de Locarno, o filme nos narra a história de Simone (Sol Miranda), uma jovem negra de 23 anos, que divide seu tempo entre um curso de direito penal e performances ao vivo por meio de uma webcam, em uma plataforma online de conteúdo adulto.

Entre os estudos e as performances, representando o que também pode ser interpretado como uma visão menos glamourizada sobre a verdadeira realidade de muitos dos envolvidos nesse meio, Simone vive aquilo que pode ser considerado uma vida dupla. Em relação ao estudo do direito penal, a personagem se caracteriza por seu forte engajamento em questões como a violência contra a mulher e a luta contra as injustiças sociais e da legislação brasileira vigente, principalmente. Sua personalidade performática exibicionista, por sua vez, é marcada pela busca pelo prazer envolto em tons de autodescoberta, o que culmina em uma espécie de jornada sobre a ultrapassagem de limites para que se haja o alcance de emoções carnais intensas.

Essa noção de dualidade da personagem, por sua vez, ganha vida por meio da adoção de um método de montagem bastante direto para tal. Isso porque, os acontecimentos do longa se resumem, na maior parte do tempo de projeção, a uma intercalação bastante burocrática entre dois eixos que se alternam para compor a trama. O primeiro deles são as performances de Simone, em sequências que seguem por uma lógica de linguagem que remete consideravelmente ao longa Buscando (2018), onde o ponto de vista em cena é o da própria tela de um computador, aberta na plataforma de conteúdo adulto em si. O outro, por sua vez, são cenas ambientadas em aulas, regadas a debates sobre as questões legislativas contemporâneas supracitadas. Além disso, também acompanhamos momentos de discussões intimistas que aprofundam as relações pessoais da personagem, assim como vemos o seu lado ativista ganhar vida por meio da prática de seus estudos em atendimentos a mulheres vítimas de opressão doméstica.

Para além de atual, corajoso também é um adjetivo apropriado para descrever a realização de Murat. Além do fato da protagonista interpretada por Sol Miranda ser uma figura fora daqueles que são considerados os padrões estéticos pré-estabelecidos de beleza na nossa sociedade, chama atenção como a diretora supera qualquer tabu ao retratar a nudez e o sexo de forma extremamente explícita no filme. Noção essa que permeia a obra por completo, ganhando intensidade quando a autodescoberta de Simone a leva até mesmo a práticas sadomasoquistas (sobretudo asfixia), retratadas sem pudor ou receios pela cineasta brasileira, que explora todo um exotismo naquilo que vemos em cena, potencializado pelas performances intensas de seu elenco.

Entretanto, se por um lado as sequências de nudez extrema e de sadomasoquismo são corajosas, por outro o seu tom repetitivo pode soar também apelativo e exagerado em determinados momentos. Além disso, apesar da direção de Julia Murat não se sobressair e se arriscar muito além desse fator, vale ressaltar o quanto o clímax do filme é um acerto em termos de construção de uma situação de tensão e, subsequentemente, mistério. Após ser questionada com relação às suas atitudes, onde é proposto um debate (mesmo que de forma superficial) sobre as consequências da indústria pornográfica, Simone decide receber um dos seus principais espectadores/clientes presencialmente. O impacto surge, em suma, por closes que captam uma poderosa atuação de Sol Miranda, regida por uma trilha sonora embutida de acordes graves intensos, e pela decisão criativa do destino da personagem a partir daqui ser deixado em aberto para nós, espectadores.

Assim, Regra 34 sagra-se, de qualquer forma, como uma obra impactante. Apesar do futuro de Simone ser um mistério, esse é um final que coroa a representação dessa figura marcada pela dualidade- Em paralelo ao ativismo, há o desejo incessante em atravessar limites, visando a autodescoberta e a busca pelo prazer intenso.


Guilherme Salomão

Redator

Guilherme Salomão é Social Media, Produtor Audiovisual, Colunista e Criador de Conteúdo digital apaixonado por Cinema, Música e Cultura Pop. Administrador por formação, onde foi autor do TCC “O Poder da Marca no Cinema: O Caso Star Wars de George Lucas”, ele também estudou Produção Audiovisual na Academia Internacional de Cinema.