Biombo Escuro

12º Olhar de Cinema

Neirud

por Tiago Ribeiro

18/06/2023; Foto: Olhar de Cinema

Cinema como busca

No princípio da captura das imagens em movimento, existia a ambição de se adaptar grandes obras literárias, e de registrar o cotidiano e o mundo a partir desse novo aparato que permitia imprimir em película o ir e vir das cidades. Nasciam algumas possíveis formas do cinema, que iam do entretenimento à transmissão de realidades. 

Passado mais de um século desde essa época incessante, pode-se dizer que o cinema pode ser qualquer coisa hoje em dia, inclusive uma caça à artefatos arqueológicos do que restou de vidas passadas. O século XX foi o século das imagens, onde (quase) tudo foi registrado e deixou resquícios. E é da busca por essas pegadas, na necessidade de preencher lacunas que passam pela história de sua família, que a diretora Fernanda Faya realizou Neirud, um filme sobre sua tia.

A costura que remenda todo o filme é a narração da própria diretora, que nos conduz pelo caminho que ela percorreu para investigar o passado da sua tia Neirud. Acompanhamos junto de uma coleção diversa de imagens, texturas e momentos desse trajeto. A primeira intenção de Fernanda era ouvir a história de sua própria personagem, e está no filme essa tentativa de entrevistá-la. No entanto, devido à sua falta de vontade de falar e ao eventual falecimento dela, a história teve de ser encontrada por outros caminhos. E é devido a essas circunstâncias extraordinárias que o filme de Faya se faz, da busca por uma história grande demais para permanecer não contada.

Em suas procuras, devidamente integradas no filme que acaba funcionando mesmo como uma história de detetive, a diretora percebe o quanto a história de Neirud se entrelaça com o passado cigano de sua família, e como eles percorriam o Brasil com um circo itinerante durante uma parte do século passado. Percorrendo esse caminho, o filme faz descobertas que vão desde a perseguição de ciganos no Brasil, até a realização de atos de luta livre no circo envolvendo mulheres. Uma das lutadoras é a própria Neirud, com alter ego circense "Mulher Gorila", protagonista de um espetáculo de extremo sucesso, mesmo que mal visto pelas autoridades do Brasil da ditadura militar. 

Os tesouros encontrados no transcorrer do filme o tornam uma experiência fascinante na qual seguimos as pegadas de uma história que carrega o lastro de diversos eventos históricos do século passado. A descoberta de como sua tia se juntou a família da diretor é uma que surpreende, tanto pela época em que ocorreu como pelas circunstâncias que juntavam Neirud e a avó de Faya.

Na coletiva de imprensa para o filme, realizada no 12º Olhar de Cinema, a diretora e o montador Yuri Amaral discutiram como foi o trabalho com o filme. A princípio, Neirud seria um curta de quinze minutos a ser finalizado em cinco semanas. Yuri comentou sobre como via o potencial do material que tinha diante de si, e a equipe decidiu cavar mais fundo. Calhou de se tornar um processo de anos, e muito material foi encontrado.E fica na mente as diversas direções que Neirud poderia ter tomado, os milhares de filmes que poderia ter sido. E isso implica uma maquinação do documentário moderno que implica um processo de trabalho caleidoscópico, encontrando diversos pontos de entrada em um mesmo assunto.

Trazendo sequências que exploram o documentário observacional, o filme ensaio e os arquivos domésticos, Neirud acaba por ser mais do que a colagem da busca de uma diretora pelo passado de sua família, mas também o testamento da história de uma mulher que enfrentou um mundo que queria excluir sua existência.