Biombo Escuro

18ª CineOP

As Linhas da Minha Mão

por Tiago Ribeiro

26/06/2023; Foto: CineOP

Encontrando o universo do outro

Os símbolos que carregamos em nossos corpos dizem muito sobre nossa própria história. As cicatrizes falam da memória de feridas antigas, um lembrete que nosso corpo teve que reagir para curar algo que interferiu no corpo. Há quem diga que as pessoas carregam suas histórias nos olhos, e as tatuagens são instrumentos simbólicos de auto expressão fortíssimos. Há inúmeras portas de entrada que o corpo humano carrega sobre si mesmo. 

Destas leituras surge a prática da quiromancia, ou a leitura dos sinais das mãos por vias de ver o futuro. Era prática comum em boa parte das civilizações antigas, tendo sua origem traçada a astrologia hindu e a prática de vidência cigana. Dentro da crença da quiromancia, estaria impressa nas mãos de alguém toda sua trajetória terrena, sendo possível ler seu futuro e seu passado através dos sinais lá contidos. Essa prática é, hoje, considerada uma pseudociência, mas foi importante instrumento de significação para inúmeros povos que precederam a modernidade.

Desse misticismo surge As Linhas da Minha Mão, filme dirigido por João Dumans, que funciona como quiromancia, mas através do discurso cinematográfico. O passado, o presente e o futuro que vemos é da atriz Viviane de Cassia Ferreira, em sete atos que exploram, cada um de sua própria maneira, um lado de sua vivência. 

A cadência é a da fala de Viviane, de sua aura e do que ela emana. Em uma sequência do filme, vemos Viviane praticando yoga, e em seguida comentando junto de um amigo passagens da obra de Nietzsche "O Crepúsculo dos Ídolos". Ela ri com veemência, e acrescenta especulações filosóficas que adicionam à abstração nietzscheana. Em outra passagem ela desabafa para outro amigo sua experiência com a própria saúde mental e sua relação com medicações psiquiátricas. Nesse momento ela desata a falar, e a câmera de Dumans não descola da torrente que sai dos lábios de Viviane, que só pausa para os constantes goles na cerveja e para os tragos no cigarro.

A sensibilidade e a escuta da montagem impõem uma fluidez imensa à As Linhas da Minha Mão. A forma como Dumans faz um filme extremamente verborrágico, mas que implica toda uma dimensão que transcende as palavras, é fascinante. Não se acabam as formas de capturar a história de uma pessoa, de utilizar-se da própria fala de alguém, de situações criadas ou ficcionalizadas, de fotografias analógicas em preto e branco, para construir um dispositivo que nasce do próprio universo interno do outro. 

Através desse ethos de fazer cinema bastante simples e direto, muito advindo de uma profunda relação com a realidade e com o documental, Dumans constrói seu filme como um ensaio poético. Tendo dirigido anteriormente Arábia, ao lado de Affonso Uchôa, Dumans traz para seu novo longa um forte senso de humanismo e da natureza passageira do tempo. Seu fascínio por seres errantes, nômades de alma se concretiza em As Linhas da Minha Mão, um filme em que o objeto do documentarista torna-se o filme através de seu discurso poético, em uma exploração infindável das potencialidades da linguagem fílmica.