Biombo Escuro

24º FESTIVAL DO RIO

Os Banshees de Inisherin

por Tiago Ribeiro

12/10/2022; Fotos: Divulgação/Festival do Rio

Os ecos existenciais de uma guerra distante

Os modos de operação de um filme geralmente contemplam dois tipos de vozes possíveis, que podem ser incorporadas em inúmeras expressões do discurso cinematográfico. Entre a visão subjetiva e a objetiva surgem inúmeras formas de construir correlativos formais para perspectivas fílmicas. Há quem clame que não existe objetividade, que ela não passa de uma subjetividade falsa, pautada em pretextos construídos para a manipulação da linguagem. Para além de qualquer discussão, olhar para si e olhar para outro são movimentos naturais da ótica humana, e se refletem em suas expressões artísticas. Não diferente fez o diretor britânico Martin McDonagh com sua filmografia, alternando entre o olhar para o mundo e o olhar para si. Em Os Banshees de Inisherin(2022), através desse jogo de ponto de vista, ele encontra o palavreado certo para escrever um conto moral sobre as dimensões mais proeminentes da condição humana.

Carregando um nome demasiado irlandês, o novo longa de McDonagh se transpassa em uma ilha que poderia facilmente estar localizada no fim do mundo, compondo um ambiente mitológico perfeito para o conto moral que o diretor decide contar. Colin Farrell interpreta Pádraic Súilleabháin, um fazendeiro pacato do vilarejo ficcional de Inisherin, que vive com sua irmã, Siobhán Súilleabháin, e tem uma particular afeição por seu jumento, que sempre se anuncia com o balançar dos sinos que carrega em seu pescoço. Sua vida abastada é perturbada pela súbita mudança de coração de seu melhor amigo Colm Doherty, gentilmente apelidado por todos de Colm Sonny Larry, que decide encerrar a amizade de ambos de forma abrupta. Tudo isso se dá porque Colm, um violinista virtuoso que anima as noites no Pub de Inisherin conduzindo canções celtas, começa a sofrer com a possibilidade de morrer sem deixar um legado no mundo. Vendo o personagem de Pádraic como excessivamente boçal, Colm opta por encerrar a amizade e passa a ignorar o amigo, gerando imensos desconfortos e conflitos.

A imanência cômica que McDonagh consegue extrair de seus personagens lembra Guy Ritchie em Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes(1998) e em Snatch - Porcos e Diamantes(2001), com um linguajar muito próprio e regional. Acentuadamente engraçada, os sotaques e modos idiossincráticos de falas do irlandês são entoados pelos personagens, principalmente por Dominic Kearney, interpretado por Barry Keoghan, um jovem delinquente e traumatizado que herda a amizade dos protagonistas e se torna fiel escudeiro de Pádraic. Perturbado pela situação absurda na qual se encontra, o personagem de Colin Farrell começa a mudar conforme o mundo dos outros começa a contaminar o seu próprio, na medida em que todos os personagens parecem atormentados pela vontade de transcender. Colm rompe com o amigo com o intuito de compor uma música que atravessará os séculos como fez Mozart, e sua irmã Siobhán vive insatisfeita e incompreendida afastada do resto do mundo. Tudo isto é posto sob o fundo de tiros de canhão abafados e assustadores, representantes da Guerra Civil Irlandesa que ocorre como fundo histórico do filme.

O excesso de ambição, de desejo, começa a lentamente enlouquecer a todos, contaminando inclusive o "Idiota" dostoiéviskiano que Pádraic encarna. Se todos o criticam por ser demasiado "simples", Pádraic parece ser o único que não padece de delírios de grandeza e poder, desobedecendo a qualquer demanda maior sobre sua vida e sobre a eternidade. Ele carrega o fardo de ser um homem feliz em meio a um mundo profundamente insatisfeito, que utiliza-se da ambição e do desejo como caminho para substituir seu próprio vazio. Tudo que o rosto constantemente estupefato do Colin Farrell afirma é sua incompreensão diante dos desejos excessivamente materialistas e terrenos daqueles que o rodeiam. Confundido por ignorância, a vida de Pádraic encarna em exatidão o conceito de impermanência budista, o que torna tudo mais trágico quando seu personagem começa a tomar atitudes cada vez mais drásticas.

O momento em que a coexistência se torna incongruente é o momento em que irrompe a guerra, e mesmo que ela seja passageira, deixa um rastro de destruição e dor por onde passa. Como um conto moral que se passa na ilha da mente de um idiota, Os Banshees de Inisherin anuncia o período de guerra e vingança pelo quais os humanos terão de passar devido as suas próprias condições metafísicas. O fim de uma é apenas o prelúdio da próxima, enquanto o ciclo não se fechar.

Tiago ribeiro

Editor, Redator e Repórter

Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.