Biombo Escuro

Dimensões Políticas do Cinema Brasileiro

Nelson Pereira dos Santos: Cinema de Espelhos

por Lucas Leal

25/10/2022

O cinema brasileiro, por mais subvalorizado que seja até os dias de hoje, sempre sofreu com constantes crises identitárias. A ilusória imperatividade de padrões técnicos e narrativas plásticas impostas pela Velha Hollywood transformou os estúdios brasileiros em fábricas que sacrificam quaisquer senso de autenticidade artística que possa arriscar o lucro destas empresas.

Tal monopólio imperialista manteve-se até meados da década de 50, ao passo que o surgimento de novos artistas com novos discursos levaram à exploração não só de técnicas mais independentes de realizar suas produções, mas à criação de uma forte cultura cinematográfica que prioriza mergulhar na brasilidade por excelência. Tendo como claras influências do neorrealismo italiano, tais propostas priorizavam a integridade artística do conteúdo de um longa à perfeição técnica em sua realização, se opondo radicalmente à decupagem clássica; seja pela escassez de recursos, seja por decisões estéticas/políticas, seja por ambas as razões.

Para mais aprofundamento, brilhantes ensaios de grandes artistas como Mário Civelli e Alex Viany são válidos de leitura, mas nenhuma tese relaciona tão perfeitamente estas novas ideologias com o cinema de Nelson Pereira dos Santos como uma escrita pelo próprio diretor, intitulado “O Problema do Conteúdo no Cinema Brasileiro”: “(…) Os filmes não são como as outras mercadorias. O cinema está intimamente ligado, como arte, às experiências humanas, à cultura do nosso povo. (…) Ao espectador, interessa a história, muito mais que a técnica (…) Isto não quer dizer que ele não saiba apreciar a qualidade técnica de uma película e não deseje encontrar nas produções nacionais um bom padrão de realização. Mas os espectadores vão em busca de um assunto que, narrado com força e vigor, com calor, lhes dê o reflexo das suas experiências humanas.” Diante tal leitura é possível definir o discurso cinematográfico de Nelson Pereira dos Santos como um cinema de reflexos. Com suas experimentações formais e técnicas mais enraizadas num diálogo com o realismo social, sua filmografia se aproxima intimamente de seus personagens; criando uma relação destes não só com a crueza da realidade brasileira que os cercam mas com a cultura tradicional e artística de nosso povo como forma de resiliência.

Dito isto, torna-se previsível mas não menos fascinante notar como logo em seu primeiro projeto Nelson acerta muito ao realizar em sua obra-prima precursora do Cinema Novo um mosaico tão honesto e sensível de uma cidade marcada pela desigualdade; ao passo que demonstra as inúmeras intercalações narrativas relacionadas à codependência entre as diversas classes da Cidade Maravilhosa. Em Rio, 40 Graus, o diretor não apenas traz uma aproximação deveras íntima e vívida da cidade a quem se interessa a assistir (os primeiros minutos nos deixa claro: seremos apresentados à diversidade da cidade primeiramente como visitantes, pra logo depois nos deixar rentes ao chão, explorando as diversas facetas cariocas de formas tão diversificadas quanto), como também nos denuncia o explícito descaso à muitos de seus moradores; quase nunca de forma brutal, mas muito de forma honesta, e certas vezes até mesmo inocente. 

Grande parte da inocência se deve aos cinco garotos vendedores de amendoim, presentes ao longo de todas as costuras narrativas. Representantes da leveza e sensibilidade do Rio de Janeiro, vivenciam e presenciam a cidade como nenhum outro cidadão. Passeiam por todas suas contradições e belezas: a boêmia dos praieiros, a picaretagem dos políticos, a paixão dos casais, a violência da pobre juventude: é pelos olhares dos meninos invisíveis da sociedade que obtemos uma pluralidade de perspectivas ao mesmo tempo apaixonante e brutal das vivências cariocas. Entre momentos de dureza e crueldade no cotidiano, chegam a ser deslumbrantes os momentos de verdadeira leveza. Ressalto com muito carinho uma cena do fascinante contato que uma das crianças estabelece com a natureza do Jardim Zoológico. Sente-se uma sintonia tão bela e momentânea, como se por um pequeno intervalo de tempo tudo que prezamos é a pureza desta linda conexão com as belezas naturais cariocas. São por estas perspectivas inocentes que a beleza do Rio de Janeiro se torna mais vívida que nunca, assim como a verdadeira ressignificação das condições de vida nesta cidade. E é através deste sensível olhar que ansiamos pela preservação da pureza destes meninos ao fim da troca de núcleos narrativos, nos inesquecíveis 15 minutos restantes. 

Ao passo que Nelson retrata as duras tragédias de um país subdesenvolvido de formas aderentes ao neorrealismo, resolve intercalar e por fim dar espaço aos poucos mas tão valorizados vislumbres de união de um povo tão dividido, já mesmo naquela época. Os minutos finais distorcem o neorrealismo enraizado por nos indicar uma sociedade em constante busca por escapismo. A apoteose dada ao Maracanã e a magia da festividade sambista nos indicam uma certa felicidade catártica após um dia tão fervente, ao mesmo tempo que nos oferece uma contradição tal quanto melancólica. Sejam estas celebrações contextualizadas em forma de alegria ou luto, fato é que a cidade vai acordar outra vez, e o samba deve continuar.

É visível que além de apenas explicitar as claras naturezas denunciativas por parte do longa, Nelson opta por nos oferecer o Rio de Janeiro como uma grande, linda e imperfeita unidade, descascando-a à sua própria maneira, expondo tanto suas cruezas quantos suas belezas naturais. Como consequência, o longa acabou sendo censurado em seu ano de lançamento por supostamente exibir uma imagem negativa da Cidade Maravilhosa, se tornando um sucesso comercial logo em seguida de sua divulgação ao público, enquanto Nelson e sua equipe já planejavam novas histórias envolvendo a capital fluminense.

Curiosamente, porém, em sua aclamada sequência Rio, Zona Norte o diretor não apenas abandona a pluralidade em função de uma narrativa mais particular como também opta por mergulhar nas tragédias de seu protagonista, interpretado por um icônico Grande Otelo. Válidas comparações com o início do cinema de Pier Paolo Pasolini podem ser feitas, ao passo que assim como o diretor e poeta italiano, Nelson em seu segundo longa subverte os conceitos neorrealistas em seu cinema através de uma maior exploração do melodrama afim de realizar uma trama mais íntima e pessoal, ainda que esta represente as lutas de um povo inteiro pela resiliência de sua cultura e existência.

Assim como os vendedores de amendoim, Espírito da Luz é um homem invisível que possui uma pureza esperançosa indescritível. O que o diverge das crianças é a sua ativa resistência contra as violentas injustiças sociais que o aflige, e os trágicos rumos que uma vida de exploração e manipulação o irão levar. Nelson nos mostra que a verdadeira tragédia é a inevitabilidade do destino do homem negro e pobre, num país acostumado a acorrentar até mesmo os mais talentosos, e a noção que em seu cinema é impossível abraçar o realismo e tal libertação ser alcançada superficialmente. O que o cineasta nos oferece ao final de seu trágico longa é uma espécie de libertação interna, algo que apenas a vivacidade do samba poderia proporcionar ao Espírito por um pequeno mas simbólico momento de esperança.

Assim como em Rio, 40 Graus, o sambista está em constante busca da preservação de sua pureza em meio à sua desolada realidade social, e sua forma de resiliência está no samba. Suas derrotas se tornam derrotas para a cultura sambista, e em sua conclusão ele se torna mais um retrato do talento invisível e esquecido, com seu legado sendo ciclicamente substituído por outros. Suas lindas memórias permanecem apenas como isolados fragmentos do sonho brasileiro, por tantas vezes acorrentado e oprimido.

Com a acertada decisão de abandonar a narrativa multifacetada (as divergências particulares de ambos os longas são os melhores aspectos de cada um), Nelson consegue como consequência colocar sua tese em defesa da recuperação da brasilidade em nossa cultura em prática audiovisual, utilizando o heroísmo trágico de Espírito e o samba como símbolos de base para denunciar e refletir na constante apropriação e despersonalização do nosso povo; tão presente por exemplo no cinema comercial da época, como anteriormente citado pelo próprio diretor. O que torna Rio, Zona Norte tão atual é este fator imperialista ainda estar tão impregnado em nossa sociedade quanto nos anos 50, mesmo com nossa cultura anti-industrial permanecer tão ativa quanto. Amargado pelas críticas na época pela suposta acusação de apego ao melodrama hollywoodiano e involução estilística em relação ao seu malandro antecessor, hoje é considerado mais uma das obras-primas da filmografia do diretor. Vide isso, o jovem cineasta finaliza sua década de estreia já consolidando seu nome na história do cinema brasileiro, apenas aprimorando seu talentoso poder de retratar diversas facetas da população brasileira através da diversificação territorialista e ideológica de representações da crueza e do sonho brasileiro em suas futuras obras; vide sua adaptação sóbria e documentarista da miséria sertanista em Vidas Secas, e seu retrato mais experimentalista das relações da realidade violenta brasileira com o imaginário religioso em O Amuleto de Ogum, este particularmente sendo seu mais subestimado (e na opinião de quem vos escreve, seu mais rico) trabalho. Ao fim de suas obras, é possível afirmar que o cinema de Nelson Pereira dos Santos se tornou o pioneiro em representar e celebrar com honestidade a sociedade brasileira e todas suas facetas. Um espelho que permite uma conexão com a brasilidade maior que qualquer outro cineasta poderia nos proporcionar.