Biombo Escuro

ensaios

Que Horas Ela Volta?

por Raquel Galdino Sampaio

27/03/2022; Foto: Divulgação

Todo filme é uma expressão cultural que, ao mesmo tempo em que molda o imaginário, é também construído por ele. Nesse sentido, Que horas ela volta? (2015) desponta com uma sutil mas impactante crítica à estrutura social hierárquica do Brasil que passa despercebida. A diretora Anna Muylaert constrói uma trama verossímil e identificável, que denuncia um país segregador que se mascara de inclusivo. Através de diálogos e comportamentos do cotidiano brasileiro, o filme retrata a complexa relação de poder e amorosidade entre patrão e empregado.

No Brasil, a mistura entre afeto e trabalho é uma herança da sociedade escravocrata, como foi descrito pelo sociólogo Gilberto Freyre em seu livro Casa-Grande e Senzala (1933). Na obra, ele busca explicar a nação brasileira através de seu passado escravista e das relações estabelecidas entre a família do senhor de engenho e os escravizados. O filme mostra em detalhes as relações trabalhistas modernas que se assemelham à interação descrita pelo autor entre a família da casa-grande e os negros escravizados, exibindo a permanência dessa estrutura patriarcal mesmo que com outros contornos.

O longa conta a história de Val (Regina Casé), nordestina que trabalha como empregada doméstica de uma rica família em Morumbi, São Paulo. Com mais de dez anos no emprego, ela apresenta um ótimo convívio com os patrões e uma relação maternal com Fabinho (Michel Joelsas), filho do casal. Mas o clima confraternizante da casa é ameaçado quando Jéssica (Camila Márdila), filha de Val, se hospeda na casa para prestar vestibular em São Paulo.

O filme começa com uma cena de Val e Fabinho na piscina quando criança, com ele pedindo a atenção da empregada. Nesse momento, já é perceptível a carência de ambos: a mãe que deixou sua filha em busca de trabalho e a do menino sem a mãe, que insiste em perguntar quando ela voltaria. Val cuida de Fabinho durante todo seu crescimento e preenche o vazio de ambos. Essa característica remete ao passado escravocrata descrito por Freyre, no qual a escravizada da casa-grande tinha o papel de cuidar do filho dos senhores de engenho. É, segundo o autor, “A figura da boa negra que, nos tempos patriarcais, criava o menino lhe dando de mamar, que lhe embalava a rede ou o berço, que lhe ensina as primeiras palavras de português errado (...)” (p.419).

No filme, Val fala com erros da língua oral e utiliza muitos diminutivos, como Freyre diz que é parte do legado negro para a sociedade brasileira. Ela também mima Fabinho até sua adolescência, cantando músicas infantis para ele, pondo-o no colo, deixando-o dormir com ela, consolando-o por não passar no vestibular ou por ainda ser virgem. Esse cuidado exacerbado o deixou infantil e dependente, como mostrado na cena em que ele chora por não ter sido aprovado e recorre ao consolo de Val porque “ela o acha inteligente”. Isso se desdobra em sua reação à reprovação no vestibular, quando vai fazer intercâmbio na Austrália em vez de se esforçar mais para o próximo, atitude mais madura. Esse mimo prolongado da empregada ao filho da patroa- ou, no texto de Freyre, da escravizada ao filho do senhor de engenho- é também pontuado pelo autor, dizendo que o filho do senhor rural tem “(...) uma primeira infância cheia de dengos, de agrados, de agarrados com as mucamas (...) Mimos que em certos casos prolongavam-se pela segunda infância. Houve mães e mucamas que criaram os meninos para serem quase uns maricas” (p. 457).

Essa relação de proximidade com Val não é estabelecida somente com Fabinho. Val conhece o íntimo da família, seja através dos desabafos de Fabinho, das escutas atrás da porta, ou como confidente na hora de esconder um cigarro de maconha. Essa influência do empregado na vida íntima da família se dá, de acordo com Freyre, pela posição do escravo durante o passado ‘semifeudal’ na sociedade brasileira. A dependência dos patrões pela empregada chega ao nível da serviência, demonstrado em momentos como o que Val serve a família com o prato pronto e despeja o refrigerante no copo. Os mandos e desmandos são encobertos por palavras gentis e carinhos, fazendo com que nem mesmo Val perceba sua posição.

Nos momentos íntimos, Val é tratada como uma familiar, mas basta haver uma festa que ela põe o uniforme que a devolve a seu status de empregada. Mesmo com a proximidade com a ‘casa-grande’, Val entende que algo a difere da posição de seus patrões, apesar do afeto mútuo: ela nunca ‘ousou’ entrar na piscina, mesmo após tanto tempo de trabalho; há o sorvete da empregada, e o sorvete importado de Fabinho; seu dormitório é um quartinho separado da rica mansão dos patrões; ela não senta na mesa deles, não vai ao banheiro deles, e sempre apresenta disposição a servir. Assim, há limites invisíveis, regras não ditas mas introjetadas que caracterizam a relação entre os patrões e os empregados, e que tornam a convivência deles tão boa.

Gilberto Freyre afirma que havia também momentos de afeto nas relações entre a família da casa-grande e os escravizados, proporcionados por essa proximidade entre espaços trazida pela miscigenação. Para ele, “A escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos (…) A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se teria conservado enorme (...)” (P. 33)

O que ele chama de “zona de confraternização entre vencedores e vencidos” é algo difícil de se imaginar em uma sociedade escravocrata, mas, para ele, haveria espaços de convivência, sentimentos bons gerados a partir da relação entre a família do senhor de engenho e o escravizado presente na casa-grande. Como Freyre descreve a sociedade brasileira como híbrida, havendo um equilíbrio de opostos, há um outro lado dessa zona de confraternização: a característica sadomasoquista dessa sociedade.

Freyre diz que, por conta do passado escravocrata, patriarcal e semifeudal, a sociedade brasileira tem gosto pela tirania, pela imposição aos subordinados, e prazer em humilhar. Aqueles que são alvos desse sadismo irão revidar essa agressividade naqueles hierarquicamente inferiores, formando uma rede de abuso de poderes que entremeia relações também de afeto.

Em primeiro momento, essa característica sadomasoquista não é percebida no filmeapenas para um olhar mais atencioso. Bárbara (Karine Teles), patroa de Val, a trata muito bem, como “quase da família”, como ela mesma diz. Contudo, essa amabilidade é sempre permeada de um tom de cobrança, com um gosto por mandar, como se Val não fosse nada além de uma empregada. Quando Val a chama para conversar, ela atende um telefonema e sai andando, como se a mulher não existisse. Quando Val a presenteia, ela não valoriza o gesto, apesar de disfarçar com um cordial “obrigada, é lindo, agora guarda lá por favor”. Isso tudo dá a entender que a zona de confraternização é estabelecida enquanto Val permanece dócil e serviente, mas há uma fronteira que, se ultrapassada, pode escancarar o sadomasoquismo da relação. No filme, a zona de confraternização é ameaçada com a chegada de Jéssica, filha de Val.

Jéssica desequilibra o status quo da casa logo que chega, porque, diferente da mãe, ela se vê como igual aos patrões. Como ela diz, ela não se acha melhor, só não se acha pior. Essa postura de Jéssica causa estranhamento a todos na casa. Sua mãe se desespera, sempre tentando lembrá-la de seu lugar como filha da empregada. Fabinho a chama de estranha, por ser muito segura de si, como se alguém ‘como ela’, uma nordestina filha de empregada, devesse ter uma postura comedida diante dos patrões da mãe. Bárbara encara as ações da menina como ultrajantes. Ela vê Jéssica como abusada e arrogante por não chamá-la de “dona Bárbara”, por pedir um livro emprestado, por tomar seu sorvete caro e por pular na piscinaou seja, por ultrapassar todos os limites invisíveis que Val tanto se mantém longe. Como Bárbara não pode desfrutar de um controle sobre Jéssica como ela apresenta sobre Val, o sadomasoquismo da relação de poder se torna cada vez mais evidente, chegando ao ápice quando Bárbara proibe Jéssica de transitar pela casa.

Carlos (Lourenço Mutarelli), patrão de Val, é o único que olha fascinado para a ‘ousadia’ da menina. Chamando-o pelo primeiro nome e se interessando por sua arte, Jéssica desperta o interesse amoroso no homem de meia-idade depressivo e sem perspectiva. Assim, ele a concede ‘mimos’, como o de dormir no quarto de hóspedes, tomar o sorvete importado e outros privilégios para se manter em sua companhia- motivo da ira de Bárbara. Assim, essa relação também é representada no livro de Freyre, que enquadra a poligamia informal do senhor do engenho como herança da sociedade escravocrata, aliado à preferência sexual pela ‘mulata’. De acordo com ele, essa mulata (representada por Jéssica), ao se enquadrar como padrão de beleza, gera inveja e ciúme na mulher branca (representada por Bárbara), movendo o ciclo de sadismo.

Apesar de Bárbara ser a figura que dá as ordens na casa, com o passar do filme, percebemos que o “chefe” da família é, na verdade, Carlos. Mesmo com os incômodos da esposa, ele continua concedendo a Jéssica o que ela quer. Em conversa com a menina, ele diz que “Todo mundo dança mas sou eu que ponho a música”, marcando sua posição como “senhor de engenho” daquela casa. Assim como na época dos engenhos, ele recebe uma grande herança do pai, sustentando todos dentro da propriedade. Como Freyre também demarca em seu texto, o ócio é um valor na sociedade brasileira por conta do legado dos senhores rurais que, possuindo a mão de obra escravizada, passavam o dia na rede, sem trabalhar ou se exercitar. No filme, Carlos é acordado tarde por Val, e passa os dias na indolência de passear pela imensa casa e tomar refrigerante servido pela empregada.

Esse panorama de Freyre é importante para entender a estrutura e os valores da sociedade brasileira atual, mas deve ser posto em perspectiva crítica ao analisá-lo com maior profundidade. O autor escreve seu livro a partir do imaginário hegemônico, ou seja, ele vê a sociedade do ponto de vista da elite, da família branca, mais especificamente do senhor de engenho. Ao descrever a sociedade partindo do alto da hierarquia social- ambiente de sua origem-, ele dá um tom estetizado e emotivo a sua obra.

Assim, quando ele positiva a mestiçagem e as relações de confraternização entre senhores e escravizados, vencedores e vencidos, ele trata a convivência do regime escravocrata como um “alegre carnaval social e biológico”, como aponta Roberto DaMatta. Esse ponto de vista condescendente é o que encobre o racismo estrutural presente na sociedade brasileira, e permite a manutenção da relação trabalhista inadequada que mistura trabalho e afeto, proveniente do período escravista e com representação moderna no filme Que horas ela volta?.

Assim, percebemos os problemas evidenciados pelo filme da estreita relação de Val com os patrões. Como alguém “quase da família”, ela está longe de ser: os patrões não se interessam por suas dores ou necessidades, ela é mantida próxima, mas em um lugar distante dos que a empregam. Por isso Jéssica causa tanta comoção: diferente da mãe, ela não sabe “o seu lugar” e ultrapassa a fronteira invisível que delimita o espaço do ‘vencedor’ e do ‘vencido’.

Um autor brasileiro que critica a estetização dessa relação híbrida de exploração e afeto é Roberto DaMatta. Enquanto Freyre acreditava que a sociedade brasileira seria menos racista por conta de sua intensa miscigenação e confraternização entre etnias, DaMatta diz que essa ideia vela um racismo que mantém o status quo. A ilusão da democracia racial só seria possível enquanto o negro ’sabe seu lugar’, como é mostrado no filme através da boa relação entre os patrões e a serviente Val. Contudo, a chegada de Jéssica desvela os preconceitos da família, a partir do momento em que a menina deseja mais do que a sociedade a relega como nordestina filha de empregada.

É possível perceber o preconceito intrínseco no discurso dos membros da família da mansão: Fabinho diz que Jéssica é confiante demais, como se ela devesse manter uma postura mais humilde diante de sua baixa possibilidade de sucesso. Bárbara inferioriza Jéssica discretamente em diversos momentos, por exemplo, quando ela afirma que “o país está mudando”, porque a menina vai prestar o mesmo vestibular que seu filho, mesmo pertencendo a classes sociais distintas.

Quando Jéssica é aprovada no vestibular, é uma surpresa para todos: afinal, ela é veladamente encarada pela família da mansão como menos capaz, devido a sua classe social. Como diz DaMatta, “O fato contundente de nossa história é que somos um país feito por portugueses brancos aristocráticos, uma sociedade hierarquizada e que foi formada dentro de um quadro rígido de valores discriminatórios (P.46)”. A reação de Val mostra seu impacto com a notícia: antes conformada a uma vida subordinada, ela entra pela primeira vez na piscina dos patrões ao vislumbrar uma perspectiva na qual sua filha conquista algo maior que sua posição de empregada, se pondo como tão capaz e merecedora quanto seus patrões.

Segundo DaMatta, “A sociedade brasileira ainda não se viu como sistema altamente hierarquizado, onde não há igualdade entre as pessoas, o preconceito velado é a forma muito mais eficiente de discriminar pessoas de cor, desde que elas fiquem no seu lugar e ‘saibam’ qual é ele (P. 46)”. O mito da democracia racial proveniente da positivação da mestiçagem invisibiliza o racismo estrutural da sociedade brasileira. Nosso imaginário, apoiado no mito das três raças da mistura de brancos, negros e índios, faz parecer que foi uma união alegre, encobrindo uma hierarquização social que não se restringe ao ‘preto’ e ‘branco’, mas que envolve uma gama de intermediários. Assim, o preconceito se torna algo admissível diante da ideia da igualdade dada pela miscigenação.

O relacionamento próximo e problemático de Val com a família é simbolizado pelo presente que ela dá a Bárbara: as xícaras preto e brancas que se encaixam em pires de cores alternadas. Há uma mistura que torna tolerável o tratamento amável-exploratório do patrão ao empregado que, ao mesmo tempo em que não esclarece a posição de cada membro, apresenta rígidos limites os quais o subordinado não deve ultrapassar. Assim, no final, Val coloca ‘preto no preto e branco no branco’ -representado pelas xícaras combinando- ao se demitir e se desvincular do ambiente servil travestido de afetivo, se afastando da casa-grande e suas contradições.