Todo filme é uma expressão cultural que, ao mesmo tempo em que molda o
imaginário, é também construído por ele. Nesse sentido, Que horas ela volta? (2015)
desponta com uma sutil mas impactante crítica à estrutura social hierárquica do Brasil que
passa despercebida. A diretora Anna Muylaert constrói uma trama verossímil e identificável,
que denuncia um país segregador que se mascara de inclusivo. Através de diálogos e
comportamentos do cotidiano brasileiro, o filme retrata a complexa relação de poder e
amorosidade entre patrão e empregado.
No Brasil, a mistura entre afeto e trabalho é uma herança da sociedade escravocrata,
como foi descrito pelo sociólogo Gilberto Freyre em seu livro Casa-Grande e Senzala
(1933). Na obra, ele busca explicar a nação brasileira através de seu passado escravista e das
relações estabelecidas entre a família do senhor de engenho e os escravizados. O filme mostra
em detalhes as relações trabalhistas modernas que se assemelham à interação descrita pelo
autor entre a família da casa-grande e os negros escravizados, exibindo a permanência dessa
estrutura patriarcal mesmo que com outros contornos.
O longa conta a história de Val (Regina Casé), nordestina que trabalha como
empregada doméstica de uma rica família em Morumbi, São Paulo. Com mais de dez anos no
emprego, ela apresenta um ótimo convívio com os patrões e uma relação maternal com
Fabinho (Michel Joelsas), filho do casal. Mas o clima confraternizante da casa é ameaçado
quando Jéssica (Camila Márdila), filha de Val, se hospeda na casa para prestar vestibular em
São Paulo.
O filme começa com uma cena de Val e Fabinho na piscina quando criança, com ele
pedindo a atenção da empregada. Nesse momento, já é perceptível a carência de ambos: a
mãe que deixou sua filha em busca de trabalho e a do menino sem a mãe, que insiste em
perguntar quando ela voltaria. Val cuida de Fabinho durante todo seu crescimento e preenche
o vazio de ambos. Essa característica remete ao passado escravocrata descrito por Freyre, no
qual a escravizada da casa-grande tinha o papel de cuidar do filho dos senhores de engenho.
É, segundo o autor, “A figura da boa negra que, nos tempos patriarcais, criava o menino lhe
dando de mamar, que lhe embalava a rede ou o berço, que lhe ensina as primeiras palavras de
português errado (...)” (p.419).
No filme, Val fala com erros da língua oral e utiliza muitos diminutivos, como Freyre
diz que é parte do legado negro para a sociedade brasileira. Ela também mima Fabinho até
sua adolescência, cantando músicas infantis para ele, pondo-o no colo, deixando-o dormir
com ela, consolando-o por não passar no vestibular ou por ainda ser virgem. Esse cuidado
exacerbado o deixou infantil e dependente, como mostrado na cena em que ele chora por não
ter sido aprovado e recorre ao consolo de Val porque “ela o acha inteligente”. Isso se
desdobra em sua reação à reprovação no vestibular, quando vai fazer intercâmbio na
Austrália em vez de se esforçar mais para o próximo, atitude mais madura. Esse mimo
prolongado da empregada ao filho da patroa- ou, no texto de Freyre, da escravizada ao filho
do senhor de engenho- é também pontuado pelo autor, dizendo que o filho do senhor rural
tem “(...) uma primeira infância cheia de dengos, de agrados, de agarrados com as mucamas
(...) Mimos que em certos casos prolongavam-se pela segunda infância. Houve mães e
mucamas que criaram os meninos para serem quase uns maricas” (p. 457).
Essa relação de proximidade com Val não é estabelecida somente com Fabinho. Val
conhece o íntimo da família, seja através dos desabafos de Fabinho, das escutas atrás da
porta, ou como confidente na hora de esconder um cigarro de maconha. Essa influência do
empregado na vida íntima da família se dá, de acordo com Freyre, pela posição do escravo
durante o passado ‘semifeudal’ na sociedade brasileira. A dependência dos patrões pela
empregada chega ao nível da serviência, demonstrado em momentos como o que Val serve a
família com o prato pronto e despeja o refrigerante no copo. Os mandos e desmandos são
encobertos por palavras gentis e carinhos, fazendo com que nem mesmo Val perceba sua
posição.
Nos momentos íntimos, Val é tratada como uma familiar, mas basta haver uma festa
que ela põe o uniforme que a devolve a seu status de empregada. Mesmo com a proximidade
com a ‘casa-grande’, Val entende que algo a difere da posição de seus patrões, apesar do
afeto mútuo: ela nunca ‘ousou’ entrar na piscina, mesmo após tanto tempo de trabalho; há o
sorvete da empregada, e o sorvete importado de Fabinho; seu dormitório é um quartinho
separado da rica mansão dos patrões; ela não senta na mesa deles, não vai ao banheiro deles,
e sempre apresenta disposição a servir. Assim, há limites invisíveis, regras não ditas mas
introjetadas que caracterizam a relação entre os patrões e os empregados, e que tornam a
convivência deles tão boa.
Gilberto Freyre afirma que havia também momentos de afeto nas relações entre a
família da casa-grande e os escravizados, proporcionados por essa proximidade entre espaços
trazida pela miscigenação. Para ele, “A escassez de mulheres brancas criou zonas de
confraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos (…) A miscigenação
que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se teria
conservado enorme (...)” (P. 33)
O que ele chama de “zona de confraternização entre vencedores e vencidos” é algo
difícil de se imaginar em uma sociedade escravocrata, mas, para ele, haveria espaços de
convivência, sentimentos bons gerados a partir da relação entre a família do senhor de
engenho e o escravizado presente na casa-grande. Como Freyre descreve a sociedade
brasileira como híbrida, havendo um equilíbrio de opostos, há um outro lado dessa zona de
confraternização: a característica sadomasoquista dessa sociedade.
Freyre diz que, por conta do passado escravocrata, patriarcal e semifeudal, a
sociedade brasileira tem gosto pela tirania, pela imposição aos subordinados, e prazer em
humilhar. Aqueles que são alvos desse sadismo irão revidar essa agressividade naqueles
hierarquicamente inferiores, formando uma rede de abuso de poderes que entremeia relações
também de afeto.
Em primeiro momento, essa característica sadomasoquista não é percebida no filmeapenas para um olhar mais atencioso. Bárbara (Karine Teles), patroa de Val, a trata muito
bem, como “quase da família”, como ela mesma diz. Contudo, essa amabilidade é sempre
permeada de um tom de cobrança, com um gosto por mandar, como se Val não fosse nada
além de uma empregada. Quando Val a chama para conversar, ela atende um telefonema e sai
andando, como se a mulher não existisse. Quando Val a presenteia, ela não valoriza o gesto,
apesar de disfarçar com um cordial “obrigada, é lindo, agora guarda lá por favor”. Isso tudo
dá a entender que a zona de confraternização é estabelecida enquanto Val permanece dócil e
serviente, mas há uma fronteira que, se ultrapassada, pode escancarar o sadomasoquismo da
relação. No filme, a zona de confraternização é ameaçada com a chegada de Jéssica, filha de
Val.
Jéssica desequilibra o status quo da casa logo que chega, porque, diferente da mãe, ela
se vê como igual aos patrões. Como ela diz, ela não se acha melhor, só não se acha pior. Essa
postura de Jéssica causa estranhamento a todos na casa. Sua mãe se desespera, sempre
tentando lembrá-la de seu lugar como filha da empregada. Fabinho a chama de estranha, por
ser muito segura de si, como se alguém ‘como ela’, uma nordestina filha de empregada,
devesse ter uma postura comedida diante dos patrões da mãe. Bárbara encara as ações da
menina como ultrajantes. Ela vê Jéssica como abusada e arrogante por não chamá-la de “dona
Bárbara”, por pedir um livro emprestado, por tomar seu sorvete caro e por pular na piscinaou seja, por ultrapassar todos os limites invisíveis que Val tanto se mantém longe. Como
Bárbara não pode desfrutar de um controle sobre Jéssica como ela apresenta sobre Val, o
sadomasoquismo da relação de poder se torna cada vez mais evidente, chegando ao ápice
quando Bárbara proibe Jéssica de transitar pela casa.
Carlos (Lourenço Mutarelli), patrão de Val, é o único que olha fascinado para a
‘ousadia’ da menina. Chamando-o pelo primeiro nome e se interessando por sua arte, Jéssica
desperta o interesse amoroso no homem de meia-idade depressivo e sem perspectiva. Assim,
ele a concede ‘mimos’, como o de dormir no quarto de hóspedes, tomar o sorvete importado e
outros privilégios para se manter em sua companhia- motivo da ira de Bárbara. Assim, essa
relação também é representada no livro de Freyre, que enquadra a poligamia informal do
senhor do engenho como herança da sociedade escravocrata, aliado à preferência sexual pela
‘mulata’. De acordo com ele, essa mulata (representada por Jéssica), ao se enquadrar como
padrão de beleza, gera inveja e ciúme na mulher branca (representada por Bárbara), movendo
o ciclo de sadismo.
Apesar de Bárbara ser a figura que dá as ordens na casa, com o passar do filme,
percebemos que o “chefe” da família é, na verdade, Carlos. Mesmo com os incômodos da
esposa, ele continua concedendo a Jéssica o que ela quer. Em conversa com a menina, ele diz
que “Todo mundo dança mas sou eu que ponho a música”, marcando sua posição como
“senhor de engenho” daquela casa. Assim como na época dos engenhos, ele recebe uma
grande herança do pai, sustentando todos dentro da propriedade. Como Freyre também
demarca em seu texto, o ócio é um valor na sociedade brasileira por conta do legado dos
senhores rurais que, possuindo a mão de obra escravizada, passavam o dia na rede, sem
trabalhar ou se exercitar. No filme, Carlos é acordado tarde por Val, e passa os dias na
indolência de passear pela imensa casa e tomar refrigerante servido pela empregada.
Esse panorama de Freyre é importante para entender a estrutura e os valores da
sociedade brasileira atual, mas deve ser posto em perspectiva crítica ao analisá-lo com maior
profundidade. O autor escreve seu livro a partir do imaginário hegemônico, ou seja, ele vê a
sociedade do ponto de vista da elite, da família branca, mais especificamente do senhor de
engenho. Ao descrever a sociedade partindo do alto da hierarquia social- ambiente de sua
origem-, ele dá um tom estetizado e emotivo a sua obra.
Assim, quando ele positiva a mestiçagem e as relações de confraternização entre
senhores e escravizados, vencedores e vencidos, ele trata a convivência do regime
escravocrata como um “alegre carnaval social e biológico”, como aponta Roberto DaMatta.
Esse ponto de vista condescendente é o que encobre o racismo estrutural presente na
sociedade brasileira, e permite a manutenção da relação trabalhista inadequada que mistura
trabalho e afeto, proveniente do período escravista e com representação moderna no filme
Que horas ela volta?.
Assim, percebemos os problemas evidenciados pelo filme da estreita relação de Val
com os patrões. Como alguém “quase da família”, ela está longe de ser: os patrões não se
interessam por suas dores ou necessidades, ela é mantida próxima, mas em um lugar distante
dos que a empregam. Por isso Jéssica causa tanta comoção: diferente da mãe, ela não sabe “o
seu lugar” e ultrapassa a fronteira invisível que delimita o espaço do ‘vencedor’ e do
‘vencido’.
Um autor brasileiro que critica a estetização dessa relação híbrida de exploração e
afeto é Roberto DaMatta. Enquanto Freyre acreditava que a sociedade brasileira seria menos
racista por conta de sua intensa miscigenação e confraternização entre etnias, DaMatta diz
que essa ideia vela um racismo que mantém o status quo. A ilusão da democracia racial só
seria possível enquanto o negro ’sabe seu lugar’, como é mostrado no filme através da boa
relação entre os patrões e a serviente Val. Contudo, a chegada de Jéssica desvela os
preconceitos da família, a partir do momento em que a menina deseja mais do que a
sociedade a relega como nordestina filha de empregada.
É possível perceber o preconceito intrínseco no discurso dos membros da família da
mansão: Fabinho diz que Jéssica é confiante demais, como se ela devesse manter uma postura
mais humilde diante de sua baixa possibilidade de sucesso. Bárbara inferioriza Jéssica
discretamente em diversos momentos, por exemplo, quando ela afirma que “o país está
mudando”, porque a menina vai prestar o mesmo vestibular que seu filho, mesmo
pertencendo a classes sociais distintas.
Quando Jéssica é aprovada no vestibular, é uma surpresa para todos: afinal, ela é
veladamente encarada pela família da mansão como menos capaz, devido a sua classe social.
Como diz DaMatta, “O fato contundente de nossa história é que somos um país feito por
portugueses brancos aristocráticos, uma sociedade hierarquizada e que foi formada dentro de
um quadro rígido de valores discriminatórios (P.46)”. A reação de Val mostra seu impacto
com a notícia: antes conformada a uma vida subordinada, ela entra pela primeira vez na
piscina dos patrões ao vislumbrar uma perspectiva na qual sua filha conquista algo maior que
sua posição de empregada, se pondo como tão capaz e merecedora quanto seus patrões.
Segundo DaMatta, “A sociedade brasileira ainda não se viu como sistema altamente
hierarquizado, onde não há igualdade entre as pessoas, o preconceito velado é a forma muito
mais eficiente de discriminar pessoas de cor, desde que elas fiquem no seu lugar e ‘saibam’
qual é ele (P. 46)”. O mito da democracia racial proveniente da positivação da mestiçagem
invisibiliza o racismo estrutural da sociedade brasileira. Nosso imaginário, apoiado no mito
das três raças da mistura de brancos, negros e índios, faz parecer que foi uma união alegre,
encobrindo uma hierarquização social que não se restringe ao ‘preto’ e ‘branco’, mas que
envolve uma gama de intermediários. Assim, o preconceito se torna algo admissível diante da
ideia da igualdade dada pela miscigenação.
O relacionamento próximo e problemático de Val com a família é simbolizado pelo
presente que ela dá a Bárbara: as xícaras preto e brancas que se encaixam em pires de cores
alternadas. Há uma mistura que torna tolerável o tratamento amável-exploratório do patrão ao
empregado que, ao mesmo tempo em que não esclarece a posição de cada membro, apresenta
rígidos limites os quais o subordinado não deve ultrapassar. Assim, no final, Val coloca
‘preto no preto e branco no branco’ -representado pelas xícaras combinando- ao se demitir e
se desvincular do ambiente servil travestido de afetivo, se afastando da casa-grande e suas
contradições.