Biombo Escuro

25º Festival do Rio 

Pobres Criaturas

por Tiago Ribeiro

15/10/2023; Imagem: Festival do Rio

Deixando a redoma

Deus perdoe Mary Shelley. As barreiras e as distâncias criadas pelas relações patriarcais, os papéis que são escritos pela sociedade para cada um interpretar influem diretamente na performance das personas criadas por Yorgos Lanthimos, diretor advindo da Grécia que encontrou certo prestígio em suas últimas jornadas pelos festivais europeus. É um cineasta determinista, interessado no primitivismo contido na natureza humana, em contrapartida com os ditames criados pela sociedade para se auto-sustentar e impor uma moralidade dominante, ou um status-quo. Esse status-quo rege todas as relações veladas da família de Dogtooth, primeiro longa do diretor, e tende a ser uma estrutura que paira sobre todos os filmes do grego. 

Seu trabalho encontra ecos no movimento literário brasileiro do naturalismo, onde os seres humanos lembram animais disformes e seus personagens são tirados de um seleto bestiário de seres absurdos, desajustados à sua própria maneira. 

Em Pobres Criaturas, a admoestação do feminino parece ser o tema principal em um filme que lida com fortes metáforas visuais para constituir sua Europa absurdista. Bella Baxter, uma mulher criada para ser prisioneira dos anseios e necessidades dos homens que a rodeiam, a personagem de Emma Stone é uma Kaspar Hauser londrina, incongruente com a sociedade. A princípio seu comportamento infantil reserva segredos maiores guardados pelo seu captor/criador, o Dr. Godwin, vivido por Willem Dafoe

O cerceamento das liberdades e a necessidade de mantê-la em custódia realçam esse buraco no qual o Dr. Godwin tenta manter Bella Baxter. Sobre seu jugo, ela permanece uma eterna criança, impossibilitada de conviver e de aprender o modo de vida da sociedade, sempre dependendo de seu mestre para realizar a mínima tarefa. Seu corpo se torna um laboratório para um aprendiz de Godwin, Max McCandles, que sem mais nem menos decide-se casar com essa mulher que pouco consegue decidir por si mesma.

Tudo muda com a chegada de Duncan Wedderburn, interpretado por um Mark Ruffalo canastrão, que se aproveita do momento de descoberta sexual de Bella para guiá-la para fora de sua prisão doméstica. eles vão para uma Lisboa de trovadores e da boêmia, onde fazem sexo selvagem e andam no meio da alta sociedade. 

Entretanto, ao lidar com o mundo, Bella inicia uma profunda mudança interna, uma revolução por assim dizer. Ela não apenas começa a se adequar à sociedade, mas a dominá-la, tirando proveito de tudo que se apresenta em uma espiral de luxúria e hedonismo, o que leva os homens que a tentavam controlar à acessos febris de loucura. 

Toda essa historieta carrega uma roupagem bastante distinta. A fotografia trafega entre cores aberrantes e um preto e branco opaco, marcando distintamente os momentos da jornada de Bella. Os enquadramentos são obtusos e distorcidos, tornando espaços constritos em gigantescos, e vice-versa. A direção de arte é chamativa, adicionando elementos fantásticos e surrealistas à tecnologia vitoriana da época. E a música sempre encontra tons dissonantes, com instrumentos bizarros que compõem esse mundo estranho. 

E ainda assim,  mesmo que a casca técnica do filme seja impecável, ainda permanece a sensação de que há algo podre dentro. Fica a sensação de que o filme não consegue desconstruir os problemas que propõe, de uma certa forma reforçando-os com seus atores de pedigree hollywoodiano e com sua roupagem de arthouse europeu. Talvez eu só esteja cansado de mais um Dr. Frankenstein.