O novo filme de Gabriel Martins dá continuidade à pesquisa por um naturalismo singular que
a Filmes de Plástico busca desde a década passada. Se havia no último longa, No Coração do Mundo
(2018), certo interesse numa mistura arriscada de referências de gênero, “Marte Um” visa uma
concentração mais clara na estrutura do drama familiar. A imagem do céu estrelado, a imensidão do
universo, abre e fecha a história dessa família brasileira tão normal – negra, de periferia, cujo pai é
porteiro e a mãe, doméstica; que a filha estuda na faculdade de direito, e seu irmão mais novo joga
futebol, mas, no fundo, sonha em ser astronauta. Vemos Wellington e Tércia no trabalho, cuidando
de prédios residenciais modernos; Eunice na festa, Deivinho na rua, na sala de aula: em interações
cotidianas, ou reunidos em casa, ou então sozinhos, enquadrados a sós. Apenas acompanhamos suas
batalhas mundanas.
Apaixonado de coração pelo futebol, Wellington (Carlos Francisco) acaba impondo altas
expectativas para que o filho siga na carreira de jogador. Eunice (Camila Damião), por sua vez, está se
apaixonando por Joana, quer morar sozinha e ganhar independência, decisões inesperadas para seus
pais. A atuação de Carlos Francisco no papel paterno concilia a generosidade retesada, a fragilidade
de um ex-alcóolatra, com as mudanças que deverá aprender a lidar. Estes conflitos de desejos
individuais, não-ditos e demandas antiquadas, se constroem como um conflito essencialmente
geracional – orgânico, portanto, mesmo que complexo e inevitável – explorado em suas dimensões
múltiplas (histórica, humana, dos limites socioeconômicos e dos papéis que precisamos cumprir). A
sensibilidade com que se filma o atrito de gerações, a comunhão e a solidão de cada um, em vários
aspectos, remete aos dramas familiares de Yasujiro Ozu. Nos dá a ver as distâncias entre eles, o íntimo,
as aproximações possíveis, as tentativas de ajudar os outros e a si próprio.
Progredindo pelas suspensões do cotidiano, o filme se faz na observação de um olhar, uma
hesitação, no esforço dos personagens por revelar ou guardar algo para si. Eles não “superam” os
problemas, o filme não é exatamente sobre os problemas e sua resolução. Tanto que o arco narrativo
de Tércia, a mãe interpretada por Rejane Faria, permanece sempre parcialmente oculto, na chave do
mistério. No começo do filme, ela sofre uma pegadinha de mal gosto da televisão e isto se torna o
gatilho de um processo mais denso, que surge na forma de uma insônia, uma tensão, e que não será
realmente nomeado em nenhum momento, como se o filme buscasse somente essa encenação da
sensação, da ansiedade nunca antes sentida, a vinda desse calafrio. Não há um mal propriamente dito,
eles não são assolados por um mal extraordinário, nem existe um desejo de buscar as causas, de
evidenciá-las: elas se diluem no dia-a-dia. Ainda assim, certamente tem algo no ar, que ronda e
pressiona a vida.
Dois marcadores temporais situam-nos muito diretamente no Brasil de bolsonaro: logo na
abertura, um rádio fala o nome do presidente; e lá para o meio do filme, sua imagem também aparece
brevemente na televisão. Outro marcador do enredo é o próprio imaginário da viagem à Marte, que
tanto se associa ultimamente à vulgaridade de bilionários megalomaníacos. Mas aqui essa imagem
aparece esvaziada da carga de pessimismo e escândalo que atribuímos hoje em dia, ela vem oca,
simbolizando apenas a esperança mais pura e inocente do garoto, seu sonhar infinito. E, de fato, soa
estranha, ambígua, a maneira como a beleza dessa imaginação livre está fundida no signo oco do
desejo de abandonar este planeta e ir embora “colonizar” um novo. Estes marcadores temporais não
se desdobram; até certo ponto, se assimilam no mal-estar geral, mas também ficam ali como sinais
duros, arbitrários, passageiros.
Muito da força de “Marte Um” vem da presença do menino Deivinho, com sua contenção e
seu olhar baixo. Ele está sempre ao redor, absorvendo as vibrações como antena, como esponja. A
capacidade de devolver suas impressões não acompanha ainda a experiência de estar ali. Memorável
a figura desse menino negro vendo o computador, o sonho maior que o mundo, sonho inalcançável e
até duvidoso – mas que nasce de uma pureza fundamental. Mesmo impossível, o sonho leva-o a criar
concretamente um telescópio feito de peças do ferro-velho, criando uma forma nova de olhar e
enxergar, uma forma compartilhável. O cinema da Filmes de Plástico, afinal, indaga esse acordo entre
o local e o universal, e este filme assume bem sua vontade de se inserir num domínio do comum. A
paisagem mineira e os detalhes únicos de Contagem: inseridos num país e inseridos no universo, o
mesmo de todos nós.