Biombo Escuro

Estreias da Semana

Marte Um

por João Pedro Rodriguez

22/08/2022; Foto: Sinny Assessoria

O lirismo do cotidiano

O novo filme de Gabriel Martins dá continuidade à pesquisa por um naturalismo singular que a Filmes de Plástico busca desde a década passada. Se havia no último longa, No Coração do Mundo (2018), certo interesse numa mistura arriscada de referências de gênero, “Marte Um” visa uma concentração mais clara na estrutura do drama familiar. A imagem do céu estrelado, a imensidão do universo, abre e fecha a história dessa família brasileira tão normal – negra, de periferia, cujo pai é porteiro e a mãe, doméstica; que a filha estuda na faculdade de direito, e seu irmão mais novo joga futebol, mas, no fundo, sonha em ser astronauta. Vemos Wellington e Tércia no trabalho, cuidando de prédios residenciais modernos; Eunice na festa, Deivinho na rua, na sala de aula: em interações cotidianas, ou reunidos em casa, ou então sozinhos, enquadrados a sós. Apenas acompanhamos suas batalhas mundanas.

Apaixonado de coração pelo futebol, Wellington (Carlos Francisco) acaba impondo altas expectativas para que o filho siga na carreira de jogador. Eunice (Camila Damião), por sua vez, está se apaixonando por Joana, quer morar sozinha e ganhar independência, decisões inesperadas para seus pais. A atuação de Carlos Francisco no papel paterno concilia a generosidade retesada, a fragilidade de um ex-alcóolatra, com as mudanças que deverá aprender a lidar. Estes conflitos de desejos individuais, não-ditos e demandas antiquadas, se constroem como um conflito essencialmente geracional – orgânico, portanto, mesmo que complexo e inevitável – explorado em suas dimensões múltiplas (histórica, humana, dos limites socioeconômicos e dos papéis que precisamos cumprir). A sensibilidade com que se filma o atrito de gerações, a comunhão e a solidão de cada um, em vários aspectos, remete aos dramas familiares de Yasujiro Ozu. Nos dá a ver as distâncias entre eles, o íntimo, as aproximações possíveis, as tentativas de ajudar os outros e a si próprio.

Progredindo pelas suspensões do cotidiano, o filme se faz na observação de um olhar, uma hesitação, no esforço dos personagens por revelar ou guardar algo para si. Eles não “superam” os problemas, o filme não é exatamente sobre os problemas e sua resolução. Tanto que o arco narrativo de Tércia, a mãe interpretada por Rejane Faria, permanece sempre parcialmente oculto, na chave do mistério. No começo do filme, ela sofre uma pegadinha de mal gosto da televisão e isto se torna o gatilho de um processo mais denso, que surge na forma de uma insônia, uma tensão, e que não será realmente nomeado em nenhum momento, como se o filme buscasse somente essa encenação da sensação, da ansiedade nunca antes sentida, a vinda desse calafrio. Não há um mal propriamente dito, eles não são assolados por um mal extraordinário, nem existe um desejo de buscar as causas, de evidenciá-las: elas se diluem no dia-a-dia. Ainda assim, certamente tem algo no ar, que ronda e pressiona a vida.

Dois marcadores temporais situam-nos muito diretamente no Brasil de bolsonaro: logo na abertura, um rádio fala o nome do presidente; e lá para o meio do filme, sua imagem também aparece brevemente na televisão. Outro marcador do enredo é o próprio imaginário da viagem à Marte, que tanto se associa ultimamente à vulgaridade de bilionários megalomaníacos. Mas aqui essa imagem aparece esvaziada da carga de pessimismo e escândalo que atribuímos hoje em dia, ela vem oca, simbolizando apenas a esperança mais pura e inocente do garoto, seu sonhar infinito. E, de fato, soa estranha, ambígua, a maneira como a beleza dessa imaginação livre está fundida no signo oco do desejo de abandonar este planeta e ir embora “colonizar” um novo. Estes marcadores temporais não se desdobram; até certo ponto, se assimilam no mal-estar geral, mas também ficam ali como sinais duros, arbitrários, passageiros.

Muito da força de “Marte Um” vem da presença do menino Deivinho, com sua contenção e seu olhar baixo. Ele está sempre ao redor, absorvendo as vibrações como antena, como esponja. A capacidade de devolver suas impressões não acompanha ainda a experiência de estar ali. Memorável a figura desse menino negro vendo o computador, o sonho maior que o mundo, sonho inalcançável e até duvidoso – mas que nasce de uma pureza fundamental. Mesmo impossível, o sonho leva-o a criar concretamente um telescópio feito de peças do ferro-velho, criando uma forma nova de olhar e enxergar, uma forma compartilhável. O cinema da Filmes de Plástico, afinal, indaga esse acordo entre o local e o universal, e este filme assume bem sua vontade de se inserir num domínio do comum. A paisagem mineira e os detalhes únicos de Contagem: inseridos num país e inseridos no universo, o mesmo de todos nós.