Biombo Escuro

Festival do rio

MEMÓRIA

por Alberto A. Mauad

15/12/2021; Foto: Divulgação

Para quem conhece a obra de Apichatpong Weerasethakul, sabe a relação que ele estabelece entre suas películas e o seu país de origem, a Tailândia, retratada constantemente como um ambiente mítico e folclórico, onde a natureza pode ser sempre palco de novas vidas e elementos, sendo o ser humano apenas uma extensão dela. Portanto, gravar o seu primeiro longa em uma pátria diferente, em um território tropical, torna a Colômbia um palco de contemplação, mistério, estudo e primitivismo fundamental.

É interessante refletir a respeito de Memória (2021) como um possível complemento, ou até uma sequência espiritual de Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010). Pois a realização, ganhadora da Palma de Ouro de 2010, apresenta, além de tudo, uma análise acerca da formação de imagens, luzes, penumbras, fantasmas e lembranças. E, agora, a partir da incessante busca de Jessica Holland (Tilda Swinton), por um barulho específico que ouviu enquanto dormia, é nos revelado um desejo do diretor pela ontologia essencial e ancestral da sonoridade.

Isto posto, se a protagonista perpassa por diversos cenários, percebemos que somos entregues a planos demasiadamente meditativos. A movimentação diante da câmera é repetidamente lenta, precisa, delicada e hipnótica. Tilda acaba se tornando essa presença fantasmagórica efêmera que, ao mesmo tempo, é uma ausência também, possibilitando essa atenção atenuada nos ruídos e barulhos sujos dos ambientes carregados, onde resultam por contar histórias por si próprios. Ademais, por várias vezes, se torna mais pertinente escutar essas sonâncias, advindas de tais recintos, do que nas interações dela com as outras pessoas na zona urbana.

Além disso, a obra ostenta uma leveza muito singular e original na cinematografia de Apichatpong Weerasethakul. Já que ele exerce um lado cômico eficiente na sua proposta, trazendo continuamente camadas maiores à película, tal qual a cena com a discussão sobre Salvador Dalí ou a divulgação do nome dado para a banda de Hernán Bedoya (Juan Pablo Urrego). Assim como há a questão da imprevisibilidade do impacto marcante do barulho, que surge nos instantes mais inesperados. Portanto, o cineasta demonstra ser excessivamente autoconsciente no sentido que ele usa outros estrondos divergentes, altos e similares – por exemplo, um trovão em meio a uma tempestade ou um estalo de um ônibus – para brincar e assustar tanto a platéia quanto o papel de Swinton.

Ao decorrer do longa, Jéssica vai se distanciando da cidade e se aproximando da ruralidade. Uma vez que, o timbre que ela procura não pode ser achado em meio ao caos urbano, nem pode ser recriado no meio artificial, como revela com êxito a sequência no estúdio - logo, involuntariamente, há a necessidade de retornar a esse berço originário. Destarte, atravessa-se por esses contrastes entre as vias e, dessa maneira, a natureza se transforma em um fundo quase aterrorizante, mas fantasioso. Assim, quando Tilda Swinton encontra um Hernán Bedoya mais velho (Elkin Dias), visualizamos como esse universo substancial ganha força, a floresta parece querer engolir a tela; o coadjuvante, literalmente, dorme, morre e volta a vida, enquanto se torna um com a terra, em um processo decompositório e dilatado.

É irônico como a protagonista, que é uma estrangeira branca, assume esse papel de exploradora dos ambientes, desse lugar colonizado. Adquirindo a função de antena parabólica e reprodutora para as memórias que são tanto individuais quanto coletivas, de um tempo bem distante, remoto e inaugural. À vista disso, consequentemente, o morador simplório e local se revela como o disco rígido para essa história antiga e mundial, ele que desde cedo é detentor desse conhecimento conectivo e primitivo. Não à toa, a ligação entre ambos é que permite não só ouvirmos as recordações do passado ancestral, como também enxergamos a nave espacial e, como efeito, esclarecer o limiar do estampido que a personagem principal tanto procurava.

Memória manifesta, assim, essa investigação essencial diante a uma caçada aos sonidos banais e orgânicos. De tentar escutar as pedras milenares, que armazenam as ondas sonoras de toda a cronologia do planeta. Onde, Apichatpong, utilizando tanto uma paisagem mais citadina quanto um panorama tropical, a partir de corpos lerdos e vagarosos, designa em cada quadro meditativo, crônicas ruidosas. Sendo essa, exatamente, a tese do outro lado da moeda audiovisual, de um primeiro cinema, iniciado em Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas.


    Alberto A. Mauad

    Redator

    Estudante de cinema na PUC-Rio, redator do Biombo Escuro e cineasta. Tem interesse pelas áreas de linguagem, história e autorismo cinematográfico.