Biombo Escuro

27º Festival É Tudo Verdade

Kurt Vonnegut: Desprendido no Tempo

por Tiago Ribeiro

05/04/2022; Foto: Divulgação

O simulacro de Vonnegut inscrito no documentário clássico

Praticamente todos os documentários sobre notórias figuras públicas passam por um lugar comum, sejam eles intelectuais respeitados, seres espirituais elevados ou pequenas jóias cult. Retornar à infância do personagem enquanto conversa com sua família, investigar a obra e tentar entender o fascínio que o elevou ao status que atingiu. Todos esses clichês máximos do documentário clássico estão presentes em Kurt Vonnegut: Desprendido no Tempo. Surpreendentemente, apesar de todos os ingredientes que fariam um filme péssimo e enfadonho, o documentário exibido no 27º Festival É Tudo Verdade, é uma imensa força de imaginação e abstração, que consegue ao mesmo tempo abordar a vida e obra do conhecido autor de ficções científicas piradas e satíricas, e integrar a própria persona idiossincrática de Vonnegut em sua estrutura.

O longa-metragem é co-dirigido pelo documentarista Don Argott e por Robert B. Weide, nome provavelmente já visto pelo leitor em memes sobre momentos constrangedores tomados pelo tema de Curb Your Enthusiasm, sitcom estadunidense estrelado por Larry David. Se Weide é conhecido pelos "directed by" no final dos episódios de Curb Your Enthusiasm, o objeto de seu documentário também é uma figura cuja fama é fortemente associada a uma obra, Matadouro-Cinco, uma sátira de tremenda força sobre a insensibilidade da guerra, experienciada pelo próprio em sua juventude.

Vemos o que Vonnegut viveu, mas Weide garante que também conheçamos a sua história com a feitura desse filme, que veio sendo construído ao longo de 40 anos. Inscrever a produção do filme cabe como uma luva, tendo em vista a predileção de Vonnegut pela metalinguagem e por refletir sobre seu próprio ofício em sua ficção, principalmente através do quase onipresente em suas obras Kilgore Trout, um escritor de ficções científicas que, apesar de desconhecido e mal sucedido, supostamente já publicou 117 romances e mais 2000 contos. É claro que estamos tratando de um documentário, mas enquanto navegamos pela vida de Vonnegut, a impressão que se tem é a de ter sido abduzido e de estar sendo conduzido ao planeta Tralfamadore.

Talvez o maior trunfo, aliado com certa sorte dos cineastas, é a massiva quantidade de imagens registradas do escritor, mostrando seu ânimo incendiário e irônico. Vonnegut carrega o espírito de um palhaço de circo, e é possível vê-lo constantemente afirmando sua predileção pelo riso em contraponto ao choro. Sua visão de mundo lembra o poema "Solidão", de Ella Wheeler Wilcox, repetido em Oldboy (2003), de Park Chan-Wook - "Ria, e o mundo rirá com você. Chore, e você chorará sozinho".

É possível sentir quem foi o escritor, mesmo estruturado nesse esquema extremamente clichezado, montado entre imagens de arquivo e talking heads de membros remanescentes da família do escritor. Kurt Vonnegut: Desprendido no Tempo despede-se do documentário clássico para se tornar algo a mais, principalmente quando inscreve a própria experiência do diretor ao fazer o filme, refletindo sobre a própria relação com a figura pública e com a figura pessoal do autor de Cama de Gato e de Café da Manhã dos Campeões. O longa-metragem acompanha a autoconsciência e sagacidade de Vonnegut em sua estrutura, e por isso é uma obra que faz justiça à genialidade de seu objeto. Resta apenas retornar a obra do autor, deleitando-se com seu sentimento anti-guerra e rindo com seu humor canastrão.

"O livro é tão curto, tão confuso, tão desarmônico, Sam, porque nada de inteligente pode ser dito sobre um massacre."

Vonnegut, Kurt. Matadouro-Cinco (p. 25). Intrínseca.


    Tiago ribeiro

    Editor, Redator e Repórter

    Tiago Ribeiro é graduado em Cinema pela PUC-Rio. É editor, redator e repórter do Biombo Escuro desde 2021. Seus interesses pessoais são teoria cinematográfica, desenho de som e animes.